Reflexões Bíblicas

A gratuidade dos dons (Chico Machado)

Quarta feira da 33ª Semana do Tempo Comum. Estamos indo em direção para a conclusão de mais um ano civil de nossa história. O tempo segue veloz e, quando menos esperamos, já estaremos lá. É necessário viver intensamente cada dia, pois eles são únicos e não voltarão mais. Por isso, é necessário que nos esforcemos para dar o melhor de nós a cada dia, fazendo a diferença para que aconteça outro mundo possível, com a nossa contribuição direta. Isto também serve para as nossas relações, inspirando nas palavras atribuídas a Shakespeare, mas é uma adaptação de um poema de Veronica Shoffstall: “Sempre devemos despedir as pessoas com palavras de amor, pois pode ser a última vez que as veremos”.

Por falar em poema, no dia de hoje, fazem 58 anos da morte de um dos nossos maiores poetas brasileiros. Estamos falando de Guimarães Rosa (1908-1967). Mineiro de Cordisburgo, João Guimarães Rosa foi contista, romancista e poeta. Um dos meus preferidos, principalmente quando iniciei a minha incursão pela literatura brasileira. Comecei por “Sagarana” (1946), e me deliciei com “Grande Sertão Veredas” (1956). Trago ainda hoje na memória as artes desenvolvidas pelo protagonista e narrador Riobaldo e seu grande amor e companheiro de jagunçagem Diadorim, Neste livro, Guimarães Rosa descreve a história que se passa no sertão, explorando temas como o bem e o mal, a existência de Deus e do Diabo, a honra e a natureza humana.

Nesta quarta feira a liturgia nos desafia a refletir mais uma vez com o Evangelho de Lucas, com Jesus subindo à Jerusalém, a frente de seus discípulos. Diante da inquietação dos discípulos, quanto à chegada do Reino, Ele lhes conta mais uma parábola, no intuito de desvendar o mistério da vinda do Reino. É bom lembrar que esta caminhada de Jesus à Jerusalém, mais do que uma caminhada geográfica, trata-se de uma caminhada teológica, onde Ele, diante do que lhe vai acontecer em Jerusalém, trata de encorajar os seus discípulos, tendo como referência a sua Paixão, Morte e Ressurreição. Algo que os discípulos, demoraram para assimilar e aceitar, como parte da realização do plano de Deus, quanto a encarnação de seu Filho no meio da humanidade.

Teologicamente, o Reino “já está” e “ainda não”. O Reino de Deus é uma realidade presente o (o “já”) e também uma realidade futura (o “ainda não”), ao mesmo tempo. Sendo assim, os que acreditam em Jesus, e tem a intenção firme de segui-lo, já experimentam esta presença do Reino através de atos de amor, graça e justiça, mas também ainda aguardam, com relativa ansiedade, a sua manifestação plena e final de Cristo, naquilo que a escatologia chama da segunda vinda de Cristo. Com o mistério da encarnação de Jesus, o Reino de Deus foi inaugurado no mundo. Entretanto o “ainda não” está por vir, com a manifestação completa, já que o Reino de Deus ainda não veio em sua plenitude. Assim, vivemos numa atitude de espera, mas não uma espera passiva e acomodada, mas uma espera atuante, de forma vigilante de quem está preparado para a chegada deste grande dia.

Filosoficamente, esta realidade transcrita acima, aparece com aquilo que a filosofia chama de “Devir humano”. Este devir se refere ao processo de transformação e de constante mudança do ser humano, abrangendo tanto as transformações biológicas quanto as culturais, sociais e de fé. Este devir reforça a ideia de que o ser humano está num estado de permanente “tornar-se” e não possui uma identidade fixa, pronta e acabada, conforme o entendimento do filósofo Heráclito. Segundo ele, através da educação, os valores e a própria existência, são vistos como caminhos desenvolvidos nessa jornada de constante desenvolvimento e adaptação. Este conceito também se aplica a vivência da fé, pois ao longo do tempo, vamos amadurecendo e crescendo cada vez mais, em direção do entendimento e maior conhecimento da pessoa de Jesus de Nazaré.

Para fazer esta caminhada, Deus nos concede, de forma gratuita, os seus dons. Dons que não são merecimentos nossos, mas gratuidade de Deus que, na sua transcendência infinita de Pai amoroso, vem até nós, e nos concede estes dons para que sejam trabalhados na construção do Reino de Deus no aqui e agora de nossa história. Estes dons nos são concedidos pela graça de Deus. Entretanto, para viver e desenvolvê-los, é necessário o nosso esforço, na caminhada de fé, no testemunho perseverante, e na busca constante da nossa conversão, para que possamos crescer cada vez mais e exercer estes dons nas relações que devemos estabelecer com os nossos irmãos e irmãs. Isto porque a caminhada de fé não se faz de maneira estática, mas em permanente transformação da realidade, baseando-nos nos valores do Evangelho.

A lógica de Deus presente na vida de Jesus é bem diferente da lógica humana que se baseia na indiferença e no comodismo, em relação à nova sociedade que Jesus veio inaugurar no meio de nós. Não basta estar preparado, esperando passivamente a manifestação de Jesus. É preciso arriscar e lançar-se à ação, para que os dons recebidos frutifiquem e cresçam. Jesus confiou à comunidade cristã a revelação da vontade de Deus e a chave do Reino. Certamente que seremos cobrados pelos dons que recebemos, e não fomos capazes de fazê-los frutificar. Assim, devemos sempre nos perguntar: quais foram os dons que Deus me concedeu e o que eu estou fazendo para estes frutifiquem, quanto a perspectiva do Reino que precisa acontecer aqui e agora? Como diria Guimarães Rosa: “Tudo o que muda a vida vem quieto no escuro, sem preparos de avisar”.

Luiz Cassio

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