Reflexões Bíblicas

Gratuidade como dom (Chico Machado)

Quinta feira da Décima Quarta Semana do Tempo Comum. Um terço do mês de julho já se foi. A rapidez como as coisas acontecem, às vezes, nos pegam de surpresa. Diante destas circunstâncias do tempo que corre veloz, sempre me recordo dos meus tempos no Seminário Santo Afonso, das aulas de latim, do professor José Braga, fazendo as suas citações. Uma das expressões que mais gostava de usar era esta: “Tempora mutantur et nos in illis” – “Os tempos mudam, e nós mudamos com eles”. Sempre enfatizando com a sua didática, reforçando a ideia de que o tempo traz mudanças permanentemente constantes e que nós, seres humanos, também nos adaptamos a essas mudanças. Como o tempo, somos seres mutantes e vamos nos adequando às mudanças que se apresentam no horizonte de nossas perspectivas. Deus é Senhor do Tempo, transcendendo a nossa existência.

10 de julho. Como seres pensantes que somos, no dia hoje, voltamos o nosso olhar para o passado e vemos que nesta data, a humanidade pensante, ganhava um grande escritor: Marcel Proust (1871-1922). Coube à França nos presentear com este homem das letras. Ficou mundialmente conhecido por causa de sua obra, “Em Busca do Tempo Perdido”, uma das maiores criações da literatura mundial. Dividida em sete livros, esta obra-prima, foi publicada entre 1913 e 1927, e sua beleza e força vão se revelando cada vez mais impactantes, com o correr dos anos. Uma narrativa histórica intimista, baseada no fluxo da memória inconsciente deste autor. Fiquei profundamente impactado com um dos livros desta obra, revisitando a minha infância, e trazendo de lá, tantas lembranças boas que a minha memória juvenil captou e se faz presente em quem sou hoje.

“O amor é o espaço e o tempo tornados sensíveis ao coração”, afirmava Marcel Proust. Amor que é a essência do ser criado por Deus. Amor de gratuidade como é gratuidade o Deus que nos criou. Gratuidade como dom total de quem se dá por inteiro, como quer Jesus que os seus discípulos sejam, na missão de anunciar a Boa Nova do Reino: “De graça recebestes, de graça deveis dar!” (Mt 10,8) É desta forma que podemos ver, através do texto de Mateus, Jesus ensinando e orientando os seus discípulos para o exercício da missão de serem eles os continuadores das mesmas ações dele: “os enviou na sua frente, para toda cidade e lugar aonde ele próprio devia ir”. (Lc 10,1) Jesus que está preparando o terreno para a sua própria pregação e ministério, enviando discípulos para preparar as pessoas e os lugares aonde ele iria. Ao enviá-los Ele demonstra a importância da preparação e da antecipação na obra missionária, assim como a confiança que Jesus tinha em seus seguidores para proclamar o Reino de Deus de forma gratuita.

Estamos nestes dias lendo e refletindo o capitulo 10 do Evangelho de Mateus. Este capítulo deste evangelista é considerado pelos exegetas – que são aquelas pessoas que se especializaram na exegese, que é a interpretação e explicação detalhada de textos (hermenêutica), especialmente os textos bíblicos – o “discurso da missão”. Ou seja, Jesus que havia chamado os doze discípulos, depois de os terem ensinado e orientado, os enviam em missão, levando adiante a proposta do Reino de Deus à humanidade inteira, para que todos possam conhecer o projeto de Deus. Interessante observar que o texto de hoje, inicia-se com a repetição do último versículo do texto de ontem: “Em vosso caminho, anunciai: O Reino dos Céus está próximo”. (Mt 10,7)

A missão se dá na gratuidade de quem se coloca a serviço das causas do Reino. Não se trata do anúncio de uma teoria abstrata, mas de algo que vai acontecendo na ordem do dia para aqueles destinatários primeiros do Reino de Deus: “Curai os doentes, ressuscitai os mortos, purificai os leprosos, expulsai os demônios”. (Mt 10,8) Uma missão que exige o comprometimento com a vida humana e se desenvolve em clima de gratuidade, pobreza e confiança, comunicando o bem fundamental na vida daquelas pessoas. A missão dos enviados não pode perder o foco e nem exige muitos penduricalhos, desviando assim da direção principal da missão: “Não leveis ouro, nem prata, nem dinheiro nos vossos cintos; nem sacola para o caminho, nem duas túnicas, nem sandálias, nem bastão”. (Mt 10,9-10)

Anunciar o Reino através da ação libertadora que concretiza os sinais da presença do Reino no meio dos que mais necessitam de vida digna e transformação social. Uma mudança radical no jeito de ser e anunciar a presença de Deus no meio do povo sofrido. Neste sentido, há muito que aprender com os ensinamentos de Jesus, uma vez que nas nossas Igrejas, os penduricalhos e adereços levados por algumas lideranças religiosas, nos dias de hoje, demonstram que eles não entenderam nada da proposta de Jesus. É um verdadeiro desfile de roupas, vaidades e egos inflados, de quem mostra que está mais preocupado com as suas aparências, do que com a mensagem original de Jesus, transmitida a seus discípulos no texto do evangelho de hoje. O serviço gratuito, a entrega total e o despojamento, devem ser as armas dos anunciadores do Reino, fazendo acontecer na historia de vida dos marginalizados, o sonho de Deus, de outro mundo possível no aqui e agora da história. O contrário disto é aquilo que já denunciava no Primeiro Testamento o Livro de Eclesiastes: “Vanitas vanitatum et omnia vanitas” – “Vaidade das vaidades, tudo é vaidade”. (Ecles 1,2)

Luiz Cassio

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