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O MISTÉRIO QUE COISAS ANTIGAS GUARDAM NA MEMÓRIA DOS ANOS (NELSON PEIXOTO)

Foto de Gisele B. Alfaia

Tal como as crianças que fazem de algum brinquedo paninho ou lembrança olfativa do colo da mamãe, assim posso imaginar e comprovar que os idosos sejam igualmente necessitados de segurança, transportando essa sensação para amansar sua solidão na velhice. As coisas passam a ser extensão ou sinal presente, como um mistério de momentos do passado que se eternizaram e são atualizados como que chamados do passado para o presente de suas vidas com suas memórias .

Vejamos duas histórias que parecem confirmar esse achado, uma das quais faz parte de minha infância, quando eu observava meu pai, deitado na rede, algumas vezes roncando, outras vezes respirando profundamente.
1. A mágica das sementes macias das Samaumeiras.
As leves e macias sementes das samaumeiras levadas pelo vento.
Era uma vez, um pequeno e pesado travesseiro, sobre o qual meu pai acomodava a sua cabeça e amaciava sua barba espessa. Nada de extraordinário encontrávamos nesse gesto de carinho do meu velho que, em sua cabeça, um travsseiro antigo lhe acariciava. Entretanto, quando meus irmãos e eu brincávamos de “guerra” e não o devolvíamos para a rede que ele descansava para o cochilo depois do almoço junto com um guaraná em pó ralado na língua do pirarucu, o pai sempre reclamava onde nós tínhamos escondido o seu mimo.
O pai, quando na velhice avançada, ele apegou-se incontrolavelmente, quando passou a usá-lo para o sono da noite. Quando o travesseirinho não estava embaixo da cabeça, dizia minha mãe: “Teu pai não dormiu bem, mas roncou desconformemente”. Passados esses anos, posso entender que o travesseiro para ele era o seu apego à minha mãe e aos filhos. Serviam inconscientemente de consolo, presença, memória e de proximidade dos filhos que já estavam saindo do ninho.

2. Um velho moedor de cana vindo do Ceará. Sem uso e enferrujado, era de posse de um nordestino cabra da peste, que lembrava de sua vida difícil no Ceará. Era um dono cuidadoso do instrumento que prensava a cana manualmente para tomar sua garapa (caldo), dividir com os filhos e fazer mel do que sobrava. Ele foi um desses heroicos migrantes em busca do “ouro” da borracha no alto Rio Juruá. Esta peça de ferro era o instrumento para voltar em sonho para sua terra e tornar a vida mais doce para os filhos no Amazonas.
Um dos filhos, o mais novo, depois da morte do pai, desceu o rio e se alojou numa ponta de ilha do Rio Solimões. Havia muita canarana, mas cana-de-açúcar mesmo era impossível, somente se tomasse a corajosa decisão de invadir a terra alta do outro lado do rio. Mas nem vara para pescar podia tirar naquelas terras de castanhais nativos.

Atrevido que era, animado pela fé e pelo direito de possuir seu pedaço, depois de fazer a Novena da Terra, no tempo da Campanha da Fraternidade de 1986 (Terra de Todos Terra de Irmaõs), quis cuidar de uma parte da terra que parecia abandonada. Foi para lá, abriu uma clareira, plantou cana e instalou seu pequeno “engenho” para recordar o tempo de seu velho pai.
Dramática foi a situação do filho cujo nome eu lembro, pois se chamavaa Ernane, o filho mais velho, que constatou o roubo do velho engenho de fazer garapa. Chorou de saudade do pai, quando levou o primeiro feixe de cana para moer.
Soluçava porque sua ligação com o pai já falecido era aquele objeto sagrado que trazia toda a memória e a história de sua família, agora espalhada, que migrara para Manaus a fim de avançar nos estudos.

Não sei como terminou essa história da família do Ernane, cujo nome significa “viajante corajoso”, “que ousa viajar” ou “aquele que tem coragem para alcançar e conseguir a paz”. Quando soube do significado do seu nome, ajustou seus sentimentos e passou a venerar a rede de pesca do seu pai, estendendo-a em sua parede de palha.
Travesseiro emgenho e rede de pesca passaram a significar a presença amorosa dos pais, que amaram seus netos e souberam pacificar a solidão com as coisas que se tornaram linguagem de eterna afeição.
Uma marca que só os corações sensíveis, leves e acolhedores como penas nas mãos são capazes de entender no rio de memórias da vida .
NELSON J. C. PEIXOTO – 04 de julho de 2015
Luiz Cassio

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