Terça feira Santa. Lembrando que a Semana Santa, ou Semana Maior, é este período litúrgico da tradição cristã, com os sete dias que antecipam a celebração da Páscoa, que comemora a Ressurreição de Jesus de Nazaré. Como já vimos, a Semana Santa tem o seu início no Domingo de Ramos, passando pela Segunda, Terça, Quarta, Quinta, Sexta, Sábado de Aleluia e pelo Domingo de Páscoa. Nesta semana, Jesus realizou suas últimas ações, sendo recebido em Jerusalém de maneira alegre e festiva, expulsando os vendilhões do templo, realizando a Última Ceia com os seus discípulos, entre outros eventos significativos de sua atividade messiânica. Na Quinta Feira Santa, Ele foi preso, julgado, condenado, torturado, e foi morto na Sexta-Feira Santa, Ressuscitando no Domingo de Páscoa, o primeiro dia da semana.

Depois do dilúvio que caiu aqui sobre as nossas terras do Araguaia, amanheci rezando no silêncio monástico de meu quintal. O tempo fechado e o frescor da noite, fez com que meus anfitriões prolongassem o seu sono em seus leitos encharcados. Trouxe para dentro de minha reflexão orante, a mensagem central deste dia, com Jesus ceando com os seus discípulos. Ele que está a caminho de sua hora crucial. No clima de entrega e doação de si mesmo, sentindo a “glorificação de Deus”, tem que conviver com a covardia e o desamor da traição. A traição de Judas e a fraqueza de Pedro, entrando no horizonte de perspectiva do caminho percorrido por Jesus. Nada que o faça desistir de seus propósitos. Consciente da sua missão, Jesus entrega-se de corpo e alma: “Agora foi glorificado o Filho do Homem, e Deus foi glorificado nele”. (Jo 13,31)

O texto joanino que refletimos nesta terça feira trata-se do encontro de Jesus com os discípulos num jantar judaico, não necessariamente a última Ceia, como nos relatam os evangelhos de Marcos, Mateus e Lucas. Judas trai o projeto de Jesus e Pedro tropeça nas suas palavras, negando peremptoriamente aquele que se tornara o seu Mestre e Senhor. Pedro nem parece o mesmo que havia feito uma das maiores profissões de fé em relação a Jesus: “Tu és o Messias, o Filho do Deus vivo”. (Mt 16,16) Jesus convivendo com as limitações humanas de seu grupo. Como Ele não chamara pessoas perfeitas, e nem seria coerente se assim o fizesse, está colhendo os frutos de nossa humanidade complexa. Amor e traição fazem parte de nosso ser constitutivo neste mundo. Ambos convivem conosco em nosso interior e ganha maior força aquele que dermos maior relevância na nossa caminhada errante.

A longa noite da paixão de Jesus começa com a traição de Judas, numa hora mais sagrada do judaísmo, que é o sentar-se a mesa para as refeições. Todavia, o símbolo da traição pode estar presente dentro de cada um de nós, quando também traímos o projeto de Jesus. Amor e traição fazem parte de nossa essência humana. Se Judas foi capaz de trair aquele que o havia chamado para fazer parte de seu grupo, nós também o fazemos, todas as vezes que mudamos de lado, para estar com o poder, as riquezas, o prazer, a vida fácil dos privilégios e regalias de quem se alia para estar ao lado dos poderosos que estão no poder. A dor da traição só é sentida pelo traído, já que a insensatez do coração que trai se faz insensível à dor de quem é traído.

A coerência é o distintivo que nos qualifica para estar ao lado de Jesus. A fidelidade e o testemunho martirial também. De nada adianta dizer que estamos com e do lado de Jesus e fazemos as coisas contrárias que Ele nos ensinou com a sua palavra e ações libertadoras. O chamado feito aos discípulos e discípulas, continua acontecendo na história de nossas vidas. Fazer parte do grupo de Jesus exige renúncias, desapego, doação e serviço às causas do Reino. Contentar-nos apenas com as práticas devocionais sacramentais do final de semana, é muito pouco para quem quer fazer parte do discipulado de Jesus. Negar e trair Jesus, é deixar de fazer aquilo que Ele faria estando aqui nas mesmas condições e circunstâncias que estamos vivendo no aqui e agora.

“O que tens a fazer, executa-o depressa” (Jo 13,27). Jesus está decidido a fazer o caminho que o Pai o designou. Nada e nem ninguém o impedirá de fazer a sua doação total ao projeto do Reino. Certamente que a decepção, em saber que no seu grupo, haviam pessoas que iriam trair e negá-lo o fez ficar triste. Entretanto, Ele sabe que o ser humano é mesmo assim: ama na mesma dimensão que odeia e trai. Isto tudo nos serve de alerta, para que possamos repensar a nossa trajetória de vida, para que assim possamos nos entregar totalmente no seguimento d’Ele. Seguir a Jesus é buscar ser fiel nas pequenas coisas da vida. Se dissermos que amamos a Deus, temos que provar isto amando as pessoas que estão do nosso lado. Amar a Deus é estar à serviço dos pequenos que mais necessitam de cuidados. “Se alguém diz: Eu amo a Deus, e no entanto odeia o seu irmão, esse tal é mentiroso; pois quem não ama o seu irmão, a quem vê, não poderá amar a Deus, a quem não vê. (1Jo 4,20) Quem não é fiel ao irmão, a irmã, com quem caminha, não pode ser fiel a Deus a quem diz acreditar.