Quarta feira da Quarta Semana da Quaresma. Seguimos o roteiro propício deste tempo litúrgico: tempo de oração; tempo de jejuar; tempo de abri-nos à solidariedade. Oração de sintonia com Deus e os irmãos; prática do jejum que agrada a Deus; Solidariedade como gesto concreto de ser e estar com os pobres. Mais da metade do deserto de nossa conversão já foi percorrido, por isso urge nos questionarmos: assumi pra valer o meu compromisso com a proposta de construção do Reino de Deus com Jesus até aqui? Cada dia é um dia que temos pela frente para executar as tarefas que possam trazer este Reino para o meio de nós, cumprindo aquilo que fora dito pelo próprio Jesus: “o Reino de Deus está dentro de vós”. (Lc 17,21)

Minha quarta feira amanheceu triste e solitária. Meu dia de ontem encerrou com a triste notícia da partida de uma das maiores lideranças do Povo Iny. Daniel Koxini (1947-2024) encantou-se e foi morar definitivamente com os ancestrais da Casa Grande. Ele que é da Aldeia Fontoura, às margens do Araguaia, localizada na Ilha do Bananal, estado do Tocantins. Como dizem as lideranças indígenas, “uma biblioteca incendiou-se”, com a partida desta grande liderança. Está sendo enterrado nesta manhã, no território sagrado de Fontoura, que cumprirá o ritual fúnebre de luto, dando uma parada na Festa de Aruanã e da Casa Grande (Hetohoky), que vinham sendo preparos para estes próximos dias.

Conheci Coxini mais de perto, ele atuando pela Funai, do Regional de São Félix do Araguaia e eu prestando serviço à Aldeia de Santa Isabel do Morro, como Coordenador da educação da escola indígena daquela aldeia. Ele sempre muito lúcido no seu pensamento, consciente da luta que travava na defesa das causas dos povos indígenas, sobretudo do Povo Iny. Vários encontros estivemos juntos, sendo um grande aprendizado para mim, que abraçava a cada dia, com afinco, a causa indígena, convivendo com pessoas como Daniel Coxini. Aprendizado que vou levar por toda a minha vida, na certeza de ter escolhido a causa certa, pela qual dou a minha vida.

Sou o que sou e quem sou, com o aprendizado que fui adquirindo ao longo destes anos todos. Já são mais de 30 anos que fiz a opção de trilhar este caminho de ida sem volta. Nosso bispo Pedro também me ensinou nos anos de convivência com ele que, cada passo dado deve ser visto na perspectiva de que estamos do lado certo da história, na certeza de fazer parte do grupo de Jesus, sendo junto com os pobres, para os pobres, com eles, nas causas deles. Um passo de cada vez, sem pressa e imediatismos. Neste sentido, o caminho vai se delineando como no horizonte de perspectiva do poeta modernista espanhol Antônio Machado (1875-1939): “Caminante no hay caminho. Se hace caminho al andar”. (Caminhante, não há caminho, o caminho se faz ao andar)

Caminhar com Jesus, que a liturgia desta quarta feira nos convida a refletir com a comunidade Joanina. O texto de hoje é a continuidade do dia de ontem, com Jesus enfrentando ainda a repercussão por ter curado um homem doente, em pleno dia de sábado. Para as autoridades religiosas de Jerusalém, Jesus havia violado o sábado e, por este motivo, devia morrer. Ou seja, tais autoridades se achavam no direito de decidir, quem devia ou não morrer, quando a Lei fosse infringida. Ter uma prática religiosa a favor da vida e dar um sentido libertário da Lei, não estava no programa das atividades religiosas daquelas lideranças. E a situação de Jesus se complica ainda mais quando Ele chamava a Deus de Pai, fazendo-se, assim, igual a Deus.

Inadmissível que um pobre da periferia de Nazaré, filho de um carpinteiro, se colocasse na mesma condição de Deus. Todos sabiam da procedência terrena de Jesus. José e Maria era um casal pobre do vilarejo de Nazaré. Portanto, para as lideranças religiosas, Jesus não trazia em si nenhuma ascendência divina do Pai. Para eles, Jesus era a heresia das heresias. Mal sabiam tais lideranças que eles estavam diante do Filho de Deus. Pai e Filho: unicidade e sintonia. O Verbo encarnado, que assume a condição humana, trazendo-nos a possibilidade de também adentrarmos nesta mesma divindade ancestral de Deus. O transcendente de Deus vindo até nós para que também possamos fazer a experiência profunda desta transcendência na pessoa do Filho.

“Eu e o Pai somos um”. (Jo 10,30) Unicidade, onipresença, onisciência; uma realidade que faz e acontece na pessoa do Filho que vem ser um de nós. A condição de Messias de Jesus passa pela sua filiação a Deus. As provas de seu messianismo não são teorias jurídicas, mas fatos concretos: suas ações comprovam que é Deus mesmo quem age nele. A Lei do sábado só tem sentido se ela for a favor da vida e da justiça para todos. Todas as ações de Jesus acontecem nesta mesma direção. Em tudo o que faz, Deus procura dar a vida, e sua maior obra é a ressurreição. Ressuscitar não é apenas voltar à vida física, mas levantar-se para começar vida nova e transformada. A fé em Jesus, que é compromisso com sua palavra e ação, leva o povo a começar a vida nova da ressurreição, organizando-se como família dos filhos de Deus e irmãos de Jesus. Assim, a morte já está sendo vencida, e o será definitivamente na ressurreição final.