por: Sergio Alejandro Ribaric´

 

“Eu te dei meu fôlego, meu ar.

Soprei em tuas narinas a Minha vida.

Desenhei cada detalhe teu e tudo que é Meu, Eu te dei.

Te moldei com as Minhas mãos.

Sois a obra mais perfeita que sonhei!”[1]

 

No ideário de grande parte, “vocação” e “missão” aparentemente são coisas diferentes.  A palavra “missão” parece trazer consigo o peso de uma obrigação, um peso imposto a alguém (e de cujo cumprimento e resultado um dia prestará contas).  “Vocação” já soa mais ameno, mais prazeroso. Vocação dá a ideia de um presente de Deus, (dom) algo que caracteriza e até diferencia o indivíduo e que o homem pode exercitar para usufruto próprio. Uma “vocação” o ajudará a se distinguir dos demais e, quem sabe, dinamizar os caminhos de sua vida. A ideia atual, portanto, de vocação está ligada ao pessoal, ao interior de cada pessoa.

A vocação é o que se “é”, a característica e habilidade pessoal. Fruto da graça de Deus.  Missão é o que se “faz” com essa vocação. Resposta de amor ao Amor. Fruto da disponibilidade e da liberdade humana.

“Uma das mais belas realidades da vida cristã é o chamado de Deus, a vocação, com os sinais oferecidos pelo Senhor a toda a Igreja e a cada um dos fiéis, com o qual todos podem descobrir seu caminho de disponibilidade e serviço a Deus e ao próximo.”[2]

Será?

Na verdade, “missão”, “vocação”, “dom” …. fazem parte das características pessoais. Do “DNA” que cada um dos homens recebeu no momento de sua criação. Inegável não perceber na poesia hebraica da narrativa da criação uma interpretação do amor de Deus e identitária de cada criatura humana: “O SENHOR modelou o ser humano do pó da terra“[3]. Moldar é fazer de seu jeito, de uma forma única, desejada e formada aos poucos com o cuidado de um artesão. Como uma criança que molda sua boneca de acordo com seu sonho de menina. Somos, portanto, o Sonho de DEUS. Ou poeticamente poderíamos dizer, em cada ser humano está contido o “sonho” de Deus. Lemos no profeta Jeremias uma belíssima percepção desse desejo particular de Deus em cada um nós: “Antes que Eu te formasse no ventre de tua mãe eu já te conhecia, te santifiquei e às nações te dei por profeta”. (Jr 1,4-19).

Infelizmente a vida nos faz esquecer que somos o fruto desse “sonho” de Deus. Muitos somente conseguem ver Deus como Alguém a ser obedecido, cuja “vontade” sempre será diferente da nossa.

Mas se a razão de ser e existir é fazer a vontade de Deus, aonde estaria o engano?

Proponho entender essa frase sob outro aspecto: A razão de ser e existir de cada homem é, tão somente, realizar esse sonho de Deus.

O cumprimento da vontade de Deus não é nem o cumprimento de uma lei geral e anônima, igual para todos, nem, por outro lado, a obediência servil a um modelo individual. É a realização livre de um desígnio amoroso de Deus que conta com a liberdade. Mais ainda, que dá a própria liberdade.

“A vocação é um apelo que exige resposta livre e responsável. O desenvolvimento humano integral supõe a liberdade responsável da pessoa e dos povos: nenhuma estrutura pode garantir tal desenvolvimento, prescindindo e sobrepondo-se à responsabilidade humana.” (Bento XVI: Caritas in Veritate, 17)

A maior exercício de liberdade de um homem é justamente dispor dela voluntariamente, por amor. A Deus em primeiro lugar e ao próximo em consequência da primeira; Eis a verdadeira liberdade: dispor dela. Por confiança. Por fé ou simplesmente por amor. Não é tão estranho quanto parece se pensarmos na opção e na doação de uma mãe. Seu primeiro pensamento sempre é o outro, o bem do outro, a felicidade do outro, no caso seu filho, objeto de seu amor.

A primeira homilia de seu pontificado, Bento XVI já demonstrava o caminho que sempre traçou e que daquele momento em diante, pautaria seu pontificado:

“O meu verdadeiro programa de governo é não fazer a minha vontade, não perseguir ideias minhas, pondo-me, contudo, à escuta, com a Igreja inteira, da palavra e da vontade do Senhor e deixar-me guiar por Ele, de forma que seja Ele mesmo quem guia a Igreja nesta hora da nossa história.” (Primeira homilia de Bento XVI, Domingo, 24 de abril de 2005)

Vocação: o convite à missão

Na vocação recebida, encontra-se como que criptografada essencialmente a forma de santidade que é dada a cada um. O cumprimento dessa missão se identifica com a santidade a que se lhe destina e que pode ser por ele alcançada. Daí resulta, pois, que a santidade é algo essencialmente social, portanto, afastado do capricho do indivíduo. Deus tem em cada cristão um projeto que marca sua posição dentro do mundo que o cerca. Não há perigo que esta ideia, que é única e pessoal e que encarna a santidade destinada a cada um, não seja para alguém suficientemente elevada ou ampla. Essa santidade sonhada por Deus pra cada um, participa do infinito divino e é tão sublime que ninguém, a exceção de Maria, a alcançou na sua totalidade. Perseguir esta ideia que pertence ao mistério de Deus, realizar esta “lei individual” que é uma lei sobrenatural, livremente traçada por Deus é o fim supremo do ser cristão.

Teresa de Lisieux, ou Santa Teresinha, desde cedo entendeu essa verdade: Sua vida sempre se pautou pelo abandono à vontade de Deus. Na certeza de que essa vontade seria o melhor caminho a ser seguido e que a santidade era para Deus, seu destino.  A profundidade de sua espiritualidade, que ela qualificou como “toda confiança e amor”, inspirou e continuarão inspirando muitos homens de fé. Confrontada com sua própria pequenez e irrelevância, confiava em Deus para ser sua santidade. Longe de pretensão, essa percepção deve ser a certeza da vontade divina em cada um.

Desta forma deve-se compreender as palavras de Santa Teresinha em oração:

Eu desejo cumprir perfeitamente vossa vontade e chegar ao grau de glória que o Senhor me preparou em Vosso Reino: Em outras palavras, eu desejo ser Santa!”.

Para João Paulo II e Bento XVI, a exclusividade da sua espiritualidade era a total abertura à vontade do amor de Deus, a capacidade de responder a este amor também nas “noites escuras” do espírito. Isso fez dela o grande auxilio dos pecadores, dos distantes, dos ateus, dos desesperados. Menina ainda, entra para o Carmelo aos 15 anos. Morre ainda muito jovem. Foi declarada Padroeira dos missionários.

Mas então não seria uma pretensão desejar ser “santo”?

Não. Porque ser santo é o projeto, desejo (Sonho) de Deus para cada um. Portanto desejar ser santo é desejar fazer (e ser) a vontade de Deus.  Sede santos, porque Eu sou santo. (1 Pedro 1:16)

O amor divino deve ser vivido, com particular vigor e pureza de coração, por todos os que decidiram empreender um caminho de entrega. Seja em ordem ao ministério sacerdotal e à vida consagrada, seja como leigo. O “sim” do homem, não deve ser entendido como algo que entendemos como sua vontade (convite a santidade, ao sacerdócio, ao ministério consagrado, ao casamento etc.). Mas sempre pela  resposta de Pedro a Jesus; ”Tu sabes que Te amo” (Jo 21, 15) e como Maria: “faça-se em mim, segundo a vossa vontade” (Lc 1,38).  Esse é o “sim” verdadeiro!

Mesmo que não saibamos no momento qual é essa vontade, ela consiste  no segredo de uma existência doada e vivida e repleta de profunda alegria. Segui-lo em silêncio, sem perguntas e sem conhecer o destino. O mistério de Deus permanece no oculto. A fé impede que se trate de um destino cego. Seja feita em mim, “a TUA vontade”. Maria continuou a fazê-lo diariamente mesmo diante de dificuldades, de estradas longas, de fugas e, principalmente, diante da agonia de seu filho na cruz.

Além dessa entrega de vida, ato supremo da liberdade humana, qualquer outra coisa vem do egoísmo humano e torna o homem escravo. Inclusive e talvez principalmente a perseguição a vocação.

Quantos se torturam a vida inteira, por um sim que eles supõe não cumprido, ou abandonado no meio do caminho. “Todavia, quem és tu, ó homem, para questionares a Deus? “Acaso aquilo que é criado pode interpelar seu criador dizendo: ‘Por que me fizeste assim?’” (Rm 9,20)

[1] “Estarei Contigo”. Lindíssima canção de Elaine Martins

[2]  Dom Alberto Taveira Corrêa, “Vocação e missão. CNBB

[3]Então o SENHOR modelou o ser humano do pó da terra, feito argila, e soprou em suas narinas o fôlego de vida, e o homem se tornou um ser vivente”. (Bíblia King James Atualizada, Gn 2,7)