
Encontrei-me com o Jacinto. Pediu-me que lhe trouxesse um aparelho de barba. Confesso que não vi muita barba no seu rosto, e certamente ninguém tinha arrancado. Eram outras coisas que a vida lhe tinha arrancado, mas colocado outras no lugar.
Vamos ver. Fiz o que ele pediu e trouxe-lhe quatro aparelhos, marca Bic. Pensando bem, comecei a ligar a sua situação com o que leio do profeta Isaías, que foi muito bem aplicado a Jesus na Semana Santa.
“O SENHOR, Yahweh, abriu-me os ouvidos e eu não fui rebelde, nem me afastei. Ofereci as minhas costas aos que me feriam, e a minha face, aos que me arrancavam a barba; não escondi o rosto dos que me afrontavam e me cuspiam. 7Porque Yahweh, o Eterno, me ajuda, não serei jamais constrangido. Por isso eu me opus firme como sólido rochedo e sei que não haverei de permanecer perdido”.
O rosto do Jacinto estava diferente naquela manhã. De início, pareceu-me aborrecido, logo supondo algo, pois ele acabara de sair para a vizinhança, vindo sentar no banco onde o encontrei e conversamos.
Ali, revelou seu pedido da necessidade dos aparelhos de barba e acabei notando que cortara o cabelo, o que identifiquei estar diferente a ponto de pensar que estava deprimido, mas não era bem isso.
Se não lhe arrancaram a barba, pelo menos sua condição de idoso era de quem não tinha família, nem perto e nem longe. Em parte, sua liberdade estava restrita ao seu pequeno barraco de fundo de quintal. Começava a sentir que suas forças estavam acabando e não podia mais pegar as mangas do terreno, circular entre as árvores e ir a uma taberna da esquina tomar uma cerveja.

Deixou seu barraco e foi morar perto da taberna, onde amargou o abandono. Resolvera voltar para seu barraco, onde havia uma casa de frente para a rua cheia de crianças que brincavam no quintal e, de vez em quando, recebia um prato de sopa e uns peixes fritos, tendo assim uma vizinhança “adotante” mais atenta às suas dificuldades de idoso sem família.
O barbeador que lhe entregara se transformaria num sinal de proximidade de Deus na sua vida? Se na linguagem bíblica ter a barba arrancada era sinal de violência sofrida no rosto que devia espelhar a dignidade de filho amado de Deus.
O Jacinto, em contrapartida, entendeu que ninguém o arranca a barba, mas ele a tira livremente e se enche de santo orgulho, apesar de todas as outras realidades arrancadas e da precariedade de sua saúde, apesar de ter trabalhado muito e não conseguido nada para a velhice.
Quanto a sua família, pouco se sabe por onde anda. Até ouvi falar que era um homem muito forte e trabalhador, vendendo frutas no mercado à beira do rio. A saúde identificada naquela conversa revelava que fora um homem robusto que agora estava encurvado, com dores nas costas, já parco nas palavras e gaguejando quando se atrevia a falar. Ele mesmo me disse que sua mudez é para não complicar a vida, pois se vê muito crítico e até é chamado de encrenqueiro. Foi me falando sobre sua liberdade. Disse-me que o ir e vir, a cada dia, é mais limitado. Estou certo de que seu pensamento corre livre. Parece que sua mente não sabe que seu corpo definha. Sua filosofia de vida chega cristalina quando conversa comigo e responde quando o provoco para falar.
Apesar das perdas, os ganhos estão na fé bem presentes na sua história e na velhice que chegou. Conferi isso nas palavras que já me disse em outros encontros. A fé chega aos seus lábios: “se creres em mim, não morrereis” e me dizia que “o corpo vai para a terra, mas a alma vai para Deus…”
Quanto à esperança, dizia para que a gente olhasse a cruz de Jesus padecente, entregando a vida e morrendo por nós. “Tudo vai passar e Jesus vai nos pegar nos braços”.
Contou-me uma velha história que eu conhecia: “um homem morreu, chegou no céu e São Pedro mandou o sujeito abrir a mala que estava no canto da sala. Ele foi lá e, abrindo a mala, viu que estava vazia”. Disse São Pedro: “Assim que é, meu filho, a gente chega aqui sem trazer aquelas coisas da terra. Só o Amor dá créditos para passar a eternidade com Deus”.
Concordou comigo que, toda vez que fizer a barba, estará unido a Jesus, que sofreu e morreu, mas que está vivo e ressuscitado para sempre.
Obs. (Este texto e uma adpatação de uma das histórias de vida do livro de minha autoria: “Penas Passadas, Alegrias Sem fim” – Goiânia, Editora Alta Performance – 2024)
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