Entrevista com o rabino Michel Schlesinger, por Ana Beatriz Prudente ...

Michel Schlesinger. Bacharel em Direito pela USP, Rabino da Congregação Etz Chaim (Árvore da Vida) e professor do Seminário Teológico Judaico em Nova Iorque.

Quando Deus convoca Moisés para libertar os israelitas do cativeiro no Egito, de acordo com a narrativa bíblica, o líder responde que não seria a pessoa certa para tal função porque tinha “um problema de fala”. Deus insiste e diz que enviaria junto a ele seu irmão Aarão para ser seu intérprete. Dessa forma, Moisés seria “deus diante do Faraó” (Êxodo 7:1). Ao interpretar esse versículo, comentaristas de diferentes épocas entenderam algo similar: ser “deus diante do Faraó” significaria mostrar força e poder diante do tirano egípcio.

Existe, no entanto, uma interpretação alternativa que sugere ser possível compreender que Moisés tornou-se “deus diante do Faraó” justamente porque pôde admitir sua fraqueza. Quando ele assume que não pode fazer tudo sozinho e que mesmo ele, um grande líder, precisa de seu irmão para ajudá-lo em sua tarefa, Moisés torna-se deus. Segundo essa possibilidade hermenêutica, tornar-se deus significa mostrar falibilidade e aceitar os limites do humano. Deus, em toda a Sua grandeza, também precisa dos profetas e profetizas para falar com a humanidade. Deus, em toda a Sua glória, também precisa dos juízes e juízas para liderar uma nação. Deus, em Sua sabedoria divina, precisa de Moisés para se dirigir ao Faraó. Desta forma, tornar-se deus não é abdicar da debilidade característica do ser humano, mas reconhecê-la e assumi-la. O próprio Faraó do Antigo Egito também tinha suas limitações, mas considerado-se deus onipotente do Egito, não as podia reconhecer.

Noventa anos atrás, em 1933, Adolf Hitler subiu ao poder na Alemanha democraticamente e teve início o período que passou a ser conhecido como Shoá (Holocausto, em hebraico), que se estendeu até 1945, quando terminou a Segunda Guerra Mundial. Para uns, os símbolos que representam a Shoá deveriam ser resguardados e usados apenas no contexto original em que foram criados. Assim, termos e nomes como campos de concentração, Auschwitz, câmaras de gás, Solução Final, Hitler, nazismo e Holocausto, deveriam ser aplicados apenas para descrever aquilo que se passou durante aqueles 12 anos na Europa. Qualquer utilização desta terminologia em outro contexto representaria, na opinião desses, uma descontextualização dos referidos termos e, portanto, uma dessacralização da memória das vítimas daquela barbárie.

Para outros, o Holocausto se insere na história dos diversos genocídios vividos pela humanidade e seus elementos podem ser emprestados para descrever outras atrocidades. Para esses, a aplicação dos termos relacionados à Shoá em contextos diversos de violação dos Direitos Humanos não apenas é possível como também desejável. Isto porque, além de chamar a atenção para a nova manifestação de extremismo, seu uso faz com que a memória daquela atrocidade se faça relevante para o presente.

O fato é que o Holocausto marcou de maneira definitiva a história da humanidade e impactou o mundo que se construiu a partir de suas cinzas. A criação da Organização das Nações Unidas e da Declaração Universal dos Direitos Humanos são alguns exemplos das marcas indeléveis deixadas pela Shoá.

O Holocausto não foi o primeiro nem o último genocídio que a humanidade enfrentou. O genocídio Armênio (1915-1923), o massacre dos Tutsis pelo Hutus na Ruanda em1994, Pol Pot no Camboja (1975-1979), a morte de mais de 70 milhões de pessoas em um acerto de contas promovido pelo Partido Comunista Chinês sob a liderança de Mao Tse Tung (1949-1969) exemplificam outras catástrofes produzidas pelo ser humano contra si próprio.

A Shoá também não foi a primeira perseguição sofrida pelos judeus . O anti-judaísmo transformou-se no decurso da História, mas permeou as diversas sociedades nas quais a comunidade judaica se viu inserida (ou excluída). Desde as acusações de deicídio pelo assassinato de Jesus, passando pelas incriminações de que os judeus teriam usado sangue de crianças cristãs em seus rituais sagrados, as Cruzadas, a Inquisição, os pogroms, os Protocolos dos Sábios de Sião do final do século 19 e o contemporâneo movimento de negacionismo do próprio Holocausto são alguns exemplos.

Por muitos anos, a Shoá foi contada de maneira a mostrar como a humanidade se tornou mais desumana. Os artífices da Shoá foram descritos como monstros e os seus feitos como algo desumano. No entanto, de uns anos para cá, essa compreensão foi desafiada quando afirmamos que o mais estarrecedor do Holocausto é constatar o quanto a humanidade foi revelada naquele e em outros episódios ao expormos a noção do quanto a brutalidade e a capacidade de infringir dor e sofrimento são produtos humanos. Apenas quando aceitamos esse fato, passamos a compreender algo assombroso sobre nós mesmos: carregamos o potencial de destruir e de construir.

A diferença entre o Faraó e Moisés, sugiro, não está na monstruosidade do primeiro ou na santidade do segundo. A humanidade é comum a essas duas figuras. O que os distingue é a sua capacidade de aceitar suas limitações. A possibilidade de reconhecer que possui fraquezas é o que torna Moisés poderoso, ao passo que a impossibilidade do Faraó de admitir sua debilidade fez com que não enxergasse alternativa senão a subjugação do outro.

Que o Dia Internacional em Memória às Vítimas do Holocausto seja uma oportunidade de renovarmos nosso compromisso com a defesa dos Direitos Humanos. Que seja fortalecida uma sociedade sem espaço para a islamofobia, a homofobia, o antissemitismo, a xenofobia, o racismo, a misoginia ou qualquer outra forma de fanatismo. Que esse 27 de Janeiro nos convide a aceitar os limites que nos convocam a colaborar com o restante da humanidade e, por este motivo, nos tornam “deuses”.

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