Quarta feira de cinzas. O carnaval se despede de nós.

Francisco (Chico) Machado. Missionário e escritor.

Depois de alguns dias de festa, chegamos a mais uma quaresma. Quarenta dias que caminharemos rumo ao Mistério Pascal. Na quarta feira, as comunidades cristãs, obedecendo ao calendário gregoriano, celebram o primeiro dia da quaresma. Dia das Cinzas. Nesta celebração, somos convidados à conversão como mudança mais profunda de vida, recordando a nossa fragilidade humana diante da infinitude que é Deus na sua amorosidade. As cinzas, colocadas na fronte das pessoas, quer nos recordar a necessidade de conversão: “Convertei-vos e crede no Evangelho”. (Mc 1,15)

Converter é preciso! Um apelativo que perpassa toda a vida humana. Mudança radical de ser, viver e pensar. Para a concepção cristã, somos convidados à conversão, vendo na ação de Jesus que exige mudança radical da orientação de vida. Acreditar na Boa Nova do Evangelho é aceitar o que Jesus realiza e empenhar-se com Ele, dando continuidade à sua missão neste mundo. Por este motivo que utilizamos o termo grego “metanoein”, formado a partir da união de metá, que significa “depois”; e νοῦς, que significa “pensamento” ou “intelecto”. Literalmente podemos dizer que “metanoia” seria algo semelhante a “mudar radicalmente o próprio pensamento”.

Sem conversão não há vivência profunda da fé. Sem ela a fé se torna algo apenas aparente e não transformador das pessoas e da realidade em si. Quem vive a sua religião sem passar pelo processo permanente de conversão, vive uma religião da hipocrisia, apenas para mostrar para as outras pessoas o seu jeito de viver a sua fé. Entendendo a palavra “hipocrisia” como “fingimento”, “falsidade”, virtudes contrárias a isso que a pessoa não apresenta em si. A palavra “hipocrisia” vem do latim e também do grego, significando representação teatral. A religião da hipocrisia faz da pessoa aquilo que ela não é, simulando sempre na expressão de sua fé.

Já estou em casa, depois da maratona que é ir e voltar à capital deste estado. Sofrível chegar até Cuiabá. São Pedro amanheceu de cara fechada aqui pelas bandas do Araguaia. Apesar do tempo carregado para a chuva, arrisquei e me dei bem, rezando com os cantarolantes pássaros na companhia de Pedro. O Araguaia está de monte a monte. Transbordante. O vento soprando da Ilha do Bananal prenunciando um dia de muita água a descer do céu. Rezei revisando na memória uma das falas do nosso bispo sobre a quaresma: “A grande meta da quaresma é a Páscoa – festa central do cristianismo. Neste tempo assumimos percorrer com Jesus, o caminho da provação e da cruz e vamos recebendo a força e a alegria do seu Espírito para proclamarmos a vitória da vida, enquanto lutamos contra todas as forças de violência, de injustiça e morte que, dolorosamente persistem no mundo”.

Somos movidos pela nossa espiritualidade. Espiritualidade não é o mesmo que religião. Há pessoas que possuem espiritualidade, mas não professam nenhum tipo de religião. A espiritualidade que buscamos é a mesma de Jesus de Nazaré, que incorpora em si a espiritualidade do “Servo Sofredor” do profeta Isaías. (Is 52,13-53,12) A espiritualidade libertadora presente na mística dos mártires da caminhada, transformando a realidade. É nesta mesma perspectiva que devemos interpretar as três palavras propostas pela liturgia para este Tempo Quaresmal: “jejum”, “oração” e “esmola”. Ambas as palavras, passaram por um processo de desgaste, proveniente de uma interpretação fundamentalista das religiões presentes na história. É preciso, portanto retomá-las na mesma perspectiva da mística e espiritualidade de Jesus.

“Jejuar” não é apenas deixar de comer algo, mas ser capaz de partilhar o alimento que se tem num contexto em que a fome está presente e castiga o estomago de famílias inteiras, sobretudo crianças (33 milhões de pessoas no Brasil). A “oração” não se resume a um recitar de palavras desconexas da realidade. É entrar em sintonia profunda com Deus, escutando o que Ele diz também através das pessoas que vem até nós. Dar “esmolas” não é dar simplesmente algo a alguém, mas dar aquilo de que este alguém está necessitado para viver com dignidade. A verdadeira oração fortalece a ação e nos ajuda no processo de conversão para ir ao encontro do outro. Seria aquilo que Paulo Freire pedagogicamente nos disse: “Eu amo as gentes e amo o mundo. E é porque amo as pessoas e amo o mundo que eu brigo para que a justiça social se implante antes da caridade.” Oração na ação para a transformação de nós e da realidade sem hipocrisia. Talvez por isso o Papa Francisco tenha dito: “A política é a forma mais perfeita da caridade”. Sem alarde e sem querer mostrar o que fazemos afinal, “o teu Pai, que vê o que está escondido, te dará a recompensa”. (Mt 6,18)