Nelson Peixoto, Diretor de Liturgia da UNESER.

No dia 10 de Dezembro, DIA MUNDIAL DOS DIREITOS HUMANOS, confesso que em minha vida missionária, a pregação de João Batista no deserto, era o que eu mais devia pregar e ensaiar práticas nas comunidades das margens dos rios, por onde naveguei  como padre, tal como encontramos na versão litúrgica de Isaías 40, 4, quando do cativeiro, o ‘”restinho” de Israel preparava-se para voltar à sua terra, depois de tantos anos de sofrimento e exílio. A diferença é que  nos nossos dias, são mais de 780 milhões de pessoas vivendo abaixo do Limiar Internacional da Pobreza (com menos de 1,90 dólar por dia). Mais de 11% da população mundial vive na pobreza extrema e luta para satisfazer as necessidades mais básicas na esfera da saúde, educação e do acesso à água e ao saneamento.
O Grito de João Batista não pode mais ecoar no deserto da indiferença.
“Nivelem-se todos os vales, rebaixem-se todos os montes e colinas;  endireite-se o que é torto e alisem-se todas as asperezas: a Glória do Senhor então se manifestará e toda a carne juntamente a verá, pois a boca do Senhor o disse”.

As metáforas impressionam ao usar a natureza que, como Criação de Deus, deveria servir de jardim florescente com fontes caudalosas e montanhas verdejantes.
Mas Isaías protestava , usando essas imagens. Planícies e planaltos, cumes e vales, caminhos tortuosos, acidentados de pedras, com buracos onde os pobres choravam de tristeza e desolação no cativeiro, sonhando a libertação.
Neste Advento, exatamente no dia 07 de dezembro , foi lançado o  Relatório Mundial sobre as Desigualdades para 2022, produzido pela equipe de Thomas Piketty, na Escola de Economia de Paris.
Para desmontar nossa indiferença, as estatísticas nem sempre nos comovem e muito menos nos movem à tarefa proposta por João Batista, acusado nessa trilha hermenêutica como “socialista”. Talvez nos impressione ver gente disputando lixo fresco na frente dos condomínios e tantos outros atos de desespero causados pelas desigualdades sociais.
No Amazonas, poderíamos ter indicadores diferentes, mas não seria fácil classificar como mais profunda ou mais rasa , como em outras regiões do Brasil e do Mundo. Do meu lugar social, posso falar porque mergulhei nos “vales” , em tempos de missão, nos rios do abandono, exploração e nas margens de palafitas dos igarapés de Manaus. Em outros tempos e em tempos atuais,  o impacto da miséria continua chocante.
Persiste em nossa consciência, um certo sentimento “culposo”, quando ombreamos nossa companhia com aqueles que sofrem privações das necessidades básicas e têm seus direitos humanos negados.
As desigualdades que constatamos, no mundo ferido das iniquidades, ao circular e conviver entre os vulneráveis, exige de nós como a situação mais urgente ao anúncio da Boa Nova do Reino. “Parece que vocês forçam uma exegese parcializada”, dizem alguns que não colocaram ainda os pés na poeira dos pobres e vivem a fé apenas devocional.
O sonho pregado e tão desejado por João Batista parece ter uma leitura mística e única para arrumar o mundo, começar a fender as desigualdades, incidindo como machado na raiz dos males e superando a propriedade privada absoluta. Esta, criadora das condições de crescente acumulação em detrimento de quem possui apenas a força de trabalho até a falência completa da vida útil com a produção das riquezas .
Mais trágico é estar fora do processo produtivo e ficar à mercê da assistência social ou da caridade alheia.
Com o número aumentado de pobres, em consequência das medidas políticas aplicadas, nota-se que cresce a liquidação do sistema de proteção social. Dizem que o custo dos pobres passa a ser tão alto que é impossível continuar para ter uma economia sustentável. Como estorvo, os pobres precisam ser eliminados. Chegamos até a odiá-los pervertendo o ODS 1 (Objetivo de Desenvolvimento Sustentável) ELIMINAR A MISÉRIA

João Batista clama no deserto até calarem a sua voz. Jesus vem e não mais convence quando ordena o amor solidário e insiste na divisão do pão para vê-lo multiplicado em cada mesa.
Confesso ser muito difícil seguir Jesus sem os paliativos justificadores da meritocracia. Fazemos até “arranjos existenciais” para poder viver em “paz,” aumentando a vida de devoção, sem se deixar questionar pelo que disse Jesus ao jovem rico, em Marcos 10, 21-22.
“Jesus olhou para ele e o amou.  “Falta-lhe uma coisa”, disse ele.  “Vá, venda tudo o que você possui e dê o dinheiro aos pobres, e você terá um tesouro no céu.  Depois, venha e siga-me.
Diante disso ele ficou abatido e afastou-se triste, porque tinha muitas riquezas”.

Jesus entendera que sua riqueza era apenas acumuladora para proveito pessoal, fechada para a solidariedade e estéril para a transformação social.
A fé, como discípulos seguidores de Jesus e missionários inquietos, não seria legítima se deixássemos Jesus na cruz, padecendo em milhões de despossuídos do mínimo para viver, sem o combate diário contra as desigualdades sociais e a tara pessoal de possuir riquezas só para si.

em tempo: A Editoria do Portal pede desculpas ao Nelson Peixoto e aos demais leitores desta mídia. Por razões alheias à nossa vontade não publicamos ontem este belo texto do amigo Peixoto. O fazemos hoje, pois se trata de um tema atemporal. Boa leitura!