A arte, a música em particular, não tem pátria. Ainda que às vezes, se preste a patriotismos. Quando criança, eu pouco entendia de música e o que gostava de ouvir (e vez ou outra cantar) se inseria no meio sacro e litúrgico dos tempos de coroinha e seminarista. Mas, aos doze ou treze, interno no Seminário da Pedrinha, encravado em serras e riachos que nada deviam em beleza aos prados e montanhas austríacas, a música foi se apoderando de mim.
Com diversidade de instrumentos disponíveis, tentei aprender alguns, mas parece-me que a coordenação motora não ajudava. E desisti, o que foi bom porque passei a privilegiar a escuta – simplesmente ouvi-las – as músicas, em contemplação que me transportava a terras bucólicas, ao paraíso. Tanto que muita vez me vi advertido pelo Irmão Ladislau ou pelo Padre Furlani para retornar à realidade.

Pedro Avelar. Escritor e poeta.

Mas acredito que tenha sido um deles que condescendeu com esse meu enlevo musical e punha a tocar na vitrola os vinis de música clássica, ainda os de 78 rotações, imagino. Então, ouvi certa vez o “Concerto para Piano nº 1, Opus 23”, de Tchaikovsky, obra que se aproxima dos 150 anos
Boquiaberto, olhos fechados, meus tímpanos acolheram em festa a abertura solene das trompas severas, a anunciarem o piano, para o qual se compôs, afinal, a composição. E despontavam vibrantes os tons e as notas rígidas do piano, se entrelaçando com as suaves, tentando abeirar-se da calmaria nos prados de riachos e pastoreio. Sem êxito, que a vida é luta e os tons mais encorpados melhor a representam.
Assim, sob comando do piano, a orquestra retomava os acordes com força total, demonstrando vitalidade e a resiliência humana. Tudo isso me seduziu de tal forma que ainda o tenho – o Concerto para Piano nª 1, como minha música de referência no meu viver. O qual, depois dos Seminários da Pedrinha e Aparecida, vagou por endereços incertos e mares tempestuosos, perdendo-se e se reencontrando ao sabor da sorte ou das agruras da existência. Como de certa forma foi o que ocorreu com o compositor russo.
Que escreveu a obra-prima para o amigo pianista Nikolay Rubinstein reger em Moscou, eis que retratava a alma russa. Desgostou-se, que Rubinstein achou a peça banal e intocável e exigiu que Tchaikovsky a revisasse. Perdeu o amigo e o bonde, que o compositor se aborreceu e a música acabou sendo dedicada ao maestro alemão Hans Von Bullow e estreou justamente nos Estados Unidos. Ironia, não? A “alma musical russa” se viu lançada e acolhida na nação americana. Com um detalhe: Tchaikovsky, para compor a música imortal, inspirou-se num camponês da Ucrânia, quando esteve em Kiev. Viram? A música não tem mesmo pátria. Não se compraz com guerras. É universal. É de quem tem os ouvidos atentos e o coração aberto!