“EU SOU A VERDADEIRA VIDEIRA E MEU PAI É O AGRICULTOR” (Jo 15,1).

TEOLOGIA LATINO-AMERICANA: RAÍZES, GALHOS, FRUTOS E FOLHAS

Wagner R. Rodrigues, Professor e Teólogo. Voluntário do PORTAL UNESER.

WAGNER RAFAEL RODRIGUES

RESUMO

A Teologia latino-americana da Libertação teve seus inícios no final da década de 60, mais precisamente em 1968, com o padre peruano Gustavo Gutiérrez, impulsionada pelo espírito de renovação do Concílio Vaticano II e tendo diante de si uma situação de opressão que esmagava os povos da América Latina. À luz das Sagradas Escrituras, particularmente dos Evangelhos, a teologia latino-americana é uma tentativa de animar o Povo de Deus, sendo sinal de esperança em uma época em que predominava a miséria, a violência e o medo. Tal teologia convoca o sujeito a lutar por condições justas que promovam a dignidade da pessoa humana. Nesse sentido, o presente texto indaga quais os pressupostos que possibilitaram o nascimento da teologia latino-americana e como tal reflexão teológica foi edificada. Em uma analogia, a discussão estrutura-se como uma árvore, na qual o contexto histórico latino-americano é o chão do qual brota a reflexão teológica, a fundamentação são as raízes e os desdobramentos teológicos constituem os galhos e frutos dessa teologia. Por fim, elenca-se o balanço crítico dos acertos e equívocos dos esforços por se dizer uma palavra original e significativa para um tempo e um lugar específico, que podemos associar às folhas dessa árvore, que depois de um frutuoso começo, passou por um rigoroso inverno e agora está renascendo.

Palavras-Chave: Opressão; Libertação; Dignidade; Pobreza; Vida.

 

ABSTRACT

The Latin American Liberation Theology was born in 1960’s, more precisely in 1968, by a Peruvian priest called Gustavo Gutiérrez, into the spirit of renovation of the Second Vatican Council and inside a context of oppression that exploited the Latin American people. Under the light of the teachings of the Bible, especially the Jesus Christ’s Gospel, the Liberation theology attempts to give encouragement to God’s People, as a sign of hope in a time of extremely poverty, violence and fear. Such theology invites people to face the unfairness and to promote the dignity of human person. In this way, this text asks about the fundamental basis that made possible the emergence of the Latin American Theology and how this theological reflection could be built. Making an analogy, the discussion is built like a tree: the Latin American historical context is the ground where the theological reflection come from; the fundamental basis are the roots; the practical developments of the theory build the branches and fruits of this theology. Lastly, the critical assessment of the successes and mistakes of the efforts to say an original and significant word to a specifically time and place, that we will show, can be associated to the leaves of our tree, that had a fruitful start, have passed by a rigorously winter, but now is reviving.

Key words: Opression; Liberation; Dignity; Poverty; Life.

 

INTRODUÇÃO

Desde a chegada de Cristóvão Colombo em 1492 nesse continente Ameríndio, e, igualmente, do desembarque de Pedro Alves Cabral em 1500 nessa terra de Santa Cruz, o cristianismo assegurou seu lugar na vida dos povos latino-americanos. Coube-lhe a tarefa de evangelizar o “novo mundo”, mesmo que “o Espírito do Senhor já estava presente nas populações que habitavam o continente. Elas reconheciam a seu modo, a presença de Deus, essas sementes da Palavra facilitaram a missão” (SD17 apud DNC, 2006, p.74), como atesta o Documento de Santo Domingo. Contudo, desde os primórdios da colonização portuguesa e espanhola os povos desse continente sofreram com a exploração de seus recursos naturais tendo que sujeitar-se aos colonizadores que pela violência tomaram à força o que queriam.

Porém, o trabalho de evangelização dos missionários jesuítas e franciscanos demonstrou a beleza que da Boa Nova anunciada por Jesus de Nazaré, a qual anuncia a Conversão e o Reino de Deus promovendo a misericórdia, justiça, fraternidade e paz. Assim pelo testemunho fidedigno de muitos missionários os habitantes, sobretudo indígenas, aderiam à fé cristã católica, alguns com entusiasmo, outros porque foram obrigados mesmo. Todavia, a implantação do cristianismo fundiu-se com a cultura latina- americana tornando o continente cristianizado. Mesmo diante das incongruências e das barbáries dos colonizadores a fé cristã foi esperança para muitas pessoas injustiçadas. Justamente, porque do Evangelho brota a esperança de um mundo melhor, no qual Jesus declara: “Eu vim para que todos tenham vida e vida em abundância” (Jo 10,10)[2].

Nessa perspectiva, ao longo da história latino-americana, marcada pela injustiça dos fortes sobre os fracos, a fé cristã vivida de maneira “sui generis” possibilitou uma reflexão teológica encarnada nesse continente marcado pelo sangue de inúmeros mártires. Do binômio, justiça-esperança surgiu, na década de 60 após o Concílio Vaticano II, a Teologia Latino-americana da Libertação, como resposta a tantas injustiças provindas da história latino-americana, mas aguçadas no século XX com a intensificação da exploração capitalista e das ditaduras militares que eclodiram na América Latina.

Desse modo, esse breve artigo questiona: quais os pressupostos que possibilitaram o nascimento da teologia latino-americana, e, como tal reflexão teológica foi edificada? Diante disso, o objetivo geral é enfatizar o surgimento da teologia latino-americana e descrever sua estruturação. Para alcançar tal meta postulam-se tais objetivos específicos: elucidar o contexto histórico, retratar o ponto nevrálgico da reflexão teológica latino-americana e apresentar os desdobramentos dessa teologia.

 

1.GÊNESE DO NASCIMENTO DA TEOLOGIA LATINO-AMERICANA

O start da reflexão teológica latino-americana é o condicionamento histórico no qual ela está inserida. Em outras palavras, nenhuma teologia “cai do céu”, mas trata-se de uma interpretação humana e da experiência religiosa, frente a situações que brotam da realidade. Ora, no final da metade do século XX o mundo, principalmente a Europa, estava arrasado pela Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Os aliados juntamente com a URSS (União das Repúblicas Socialistas Soviéticas) haviam derrotado o Eixo (Roma-Berlim-Tóquio). Assim, no pós-guerra o mundo se dividiu em dois blocos: o capitalista, liderado pelos Estados Unidos (EUA) e o socialista tendo à frente à União Soviética. De fato, uma guerra ideológica se iniciava, a qual ficou conhecida como “guerra fria”.

No cenário mundial havia grande preocupação por parte dos EUA combater o socialismo, uma vez muitas revoluções socialistas eram declaradas em diversos países, tais como: China, Coreia do Norte, Vietnã, Cuba, Nicarágua. Assim, também na América latina as ideias socialistas permeavam o ambiente intelectual, uma vez que por aqui havia muitas injustiças oriundas da exploração econômica encabeçada pelo capitalismo norte-americano. Em suma, os EUA para não perder a legitimidade do poder econômico e para combater o socialismo soviético financiaram inúmeras ditaduras militares no continente latino-americano, a fim de que barrasse o avanço soviético. É nesse contexto que nasce a teologia da libertação. João Libânio e Afonso Murad no seu livro “Introdução a Teologia” (2011), ressaltam:

 

Toda teologia pagã tributos a dois fatores. Nasce em determinado contexto social e histórico, marcado sobretudo pelas condições econômicas e políticas. Surge também de dentro de um movimento de ideias, de elementos culturais. Os autores de corte idealista preferem valorizar a influência ideológica. Ideia gera ideia, teologia engendra teologia. Assim, a teologia da libertação (Tdl) se explicaria pelo influxo de outras teologias. Os autores, porém, de corte prático, de sensibilidade pastoral, de maior percepção dos fatores econômicos e políticos esmeram-se em relacionar as ideias, a teologia com contexto político-econômico. (LIBANIO/ MURAD, 2011, p.159)

 

Nessa perspectiva, a condição histórica latino-americana sufragada pela exploração e dominação, mas, igualmente, por uma consciência social crescente da situação e de suas causas profundas, e pela emergência do consequente processo de libertação, aponta uma história que questiona a teologia, cobrando da reflexão teológica uma nova postura frente à realidade. Porém, qual o papel da fé cristã nesse processo de libertação? Gustavo Gutiérrez um dos pioneiros na reflexão teológica latino-americana retrata: “Cristo Salvador liberta o homem do pecado, raiz última de toda ruptura de amizade, de toda injustiça e opressão, tornando-o autenticamente livre, isto é, livre para viver em comunhão com Ele” (GUTIÉRREZ, 1975, p.44).

Destarte, o Concílio Ecumênico Vaticano II (1962-1965) convocado pelo papa João XXIII (1881-1963) marcou um novo modo da Igreja se relacionar com o mundo. Com a proposta de “abrir as janelas da Igreja para que o sopro do Espírito revitalize e renove o ambiente eclesial”, a reflexão teológica latino-americana encontrou um porto seguro para ancorar suas bases epistêmicas. Rosino Gimbelini (1998), eminente teólogo italiano destaca:

 

O Concílio Vaticano II pode ser visto como ponto de chegada de um longo processo, em que a fé procurava dar respostas aos desafios da época moderna.[…].Na América Latina, o Concílio não funcionou apenas como ponto de chegada, mas também como ponto de partida de uma nova consciência de ser Igreja. De acordo com esta análise, a Igreja latino-americana realizou uma “recepção criativa” do Concílio à luz da realidade latino- -americana, na perspectiva dos pobres a solidariedade como o homem de hoje torna-se solidariedade com os pobres, e a teologia que acompanha com reflexão este caminho é a teologia da libertação (GIBELLINI, 1998, p. 369-70).

 

Exerceram forte influência na construção da teologia latino-americana as Conferências do Episcopado Latino-americano e Caribenho. Trata-se da reunião dos bispos da América Latina e Caribe com o intuito de refletirem sobre a Igreja nos seus territórios eclesiais. Geralmente a Conferência é convocada pelo Sumo Pontífice e coordenada pelo CELAM (Conselho Episcopal Latino-Americano) criado em 1955 pelo papa Pio XII. No que tange a esse primeiro ponto é interessante os trabalhos da segunda e terceira conferência, no pós-concílio.

A Conferência de Medellín foi realizada na Colômbia entre os dias 24 de agosto e 06 de setembro de 1968. O papa Paulo VI convocou-a com a intenção de aplicar os ensinamentos do Concílio, face as realidades da América Latina. A conferência discutiu em sua pauta três pontos nodais: a promoção humana; a evangelização e crescimento na fé e as estruturas visíveis das igrejas particulares. Além disso, os bispos denunciaram a situação de exploração na qual os povos latino-americanos sofriam devido às inúmeras ditaduras militares no continente.  João Batista Libânio (2007) aponta uma das contribuições dessa conferência:

As opções de Medellín prosseguiram o trajeto libertador e popular. Incentivaram o surgimento e o incremento das CEBs que articularam intimamente fé e vida, compromisso religioso e social. Nelas a presença da Bíblia se fez fundamental. Deixou de ser livro hermético, conhecido unicamente pelo clero, para ir às mãos do povo. (LIBÂNIO, 2007, p.25)

 

Em Puebla, no México no período de 27 de janeiro a 13 de fevereiro de 1979, os bispos continuaram na mesma linha de Medelín. Diante de inúmeras injustiças os pastores indagavam: como atuar pastoralmente na América Latina em total consonância com o Evangelho? Nessa conferência, afirmou-se a opção pelos pobres, ratificada por Medelín, e optou-se ainda pela juventude, que frente ao contexto de violência era massacrada, por se colocar contra as injustiças e que nas periferias do continente era dominada pelo tráfico de drogas, prostituição e miséria.

Em suma, nesse primeiro ponto percebe-se o conflituoso contexto histórico do nascimento da teologia latino-americana da libertação, entretanto o Concílio Vaticano II possibilitou que ela ficasse suas raízes no chão da América Latina. Contudo, como ela se constitui? Será essa a tarefa do próximo ponto.

 

  1. TEOLOGIA LATINO-AMERICANA DA LIBERTAÇAO: PERCURSO E DESENVOLVIMENTO

A teologia latino-americana da libertação não é fruto do acaso, como toda e qualquer teologia. Ela traz em seu bojo a herança teológica produzida por inúmeros pensadores que contribuíram dantes da reflexão teológica sobre a libertação. Contudo, a teologia da libertação se difere das demais teologias, justamente porque naquilo que é comum a todas, por exemplo, a revelação, é visto pela ótica da situação na qual se insere a teologia. Em outras palavras, a teologia da libertação analisa a fé que brota da vida, e pela fé busca iluminar a realidade.

Desse modo, diversos nomes compõem esse modo de fazer teologia, são eles: Hugo Assman, Frei Betto, Maria Clara Luucchetti Bingemer, Clodovis Boff, Leonardo Boff, Jose Mí- gez Bonino, Pedro Casaldáliga, Enrique Dussel, Ignacio Ellacuría, Ivone Gebara, Gustavo Gutiérrez, Franz Hinkelammert, María Pilar Aquino, Pablo Richard, Oscar Arnulfo Romero, Samuel Ruiz García, Juan Luis Segundo, Jon Sobrino, Paulo Suess, Elsa Tamez, Ana Maria Tepedino e Aiban Wagua… etc dentre muitos outros.

De acordo com Libânio e Murad (2011) a teologia da libertação se distingue por três fases: o Pré-teológico; o Teológico e o Práxico.  O primeiro questiona a realidade buscando compreendê-la, o segundo à luz da fé trabalha em cima dos dados colhidos na análise da realidade e o último dá pistas de como agir diante da realidade impulsionado pela força do Evangelho.

Resumidamente, conforme os autores acima citados a teologia latino-americana da libertação assim pode ser disposta: é uma teologia da práxis, para a práxis, na práxis, pela práxis e motivada pela práxis. Ainda numa última palavra a reflexão teológica latino-americana da libertação “privilegia as relações com a práxis. Não se reduz, porém unicamente a ela, como toda e qualquer teologia, ela implica sabedoria e saber oração e doutrina, contemplação e conhecimento” (LIBÂNIO/MURAD, 2011, p.177).

Nesse sentido, cabe a questão nodal da reflexão teológica latino-americana: Quem é Jesus? Como o teólogo da libertação pensa a sua fé e como ele a vive? Nessa questão reside a reviravolta da teologia latino-americana da libertação. Para muitos teólogos Deus não está sentado no seu trono lá no céu, muito menos quer pombas e prescrições ritualísticas. Para eles Deus está junto de seu povo, assim como outrora no deserto, assim como no exílio. O teólogo da libertação relê a tradição bíblica e faz a experiência com o Deus de Jesus Cristo, pobre e crucificado. Em outas palavras, Deus caminha com seu povo, e prefere estar ao lado dos pobres ao “hospedar-se na mansão dos ricos”.  Assim, para a teologia latino-americana da libertação, o compromisso com os pobres é o ato segundo de sua teologia, tendo a experiência de fé como o seu ato primeiro.

Nessa perspectiva, para a reflexão teológica da libertação amar a Deus não significa somente contemplá-lo, mas o amor a Deus é demonstrado através do serviço aos pobres. “O serviço solidário ao oprimido significa então um ato de amor ao Cristo sofredor, uma liturgia que agrada a Deus” (BOFF, 2010, p. 15). Do mesmo modo, adverte João na sua primeira epístola: “se alguém disser: Amo a Deus, mas odeia seu irmão é um mentiroso: pois quem não ama seu irmão, a quem vê, a Deus, a quem não vê, não poderá amar” (1Jo 4,20). De tal modo que, Leonardo Boff (2012) no seu famoso e polêmico livro: “Jesus Cristo Libertador”, declara:

 

Viver a fé em Jesus Cristo Libertador supõe um compromisso com a libertação histórica dos oprimidos. A partir de um compromisso real (lugar social) se procura dar relevância a todas as dimensões libertadoras presentes no mistério de Jesus Cristo. Enfatiza-se a prática libertadora do Jesus histórico, pois como Filho encarnado proclamou uma determinada mensagem e se comportou de tal forma que tinha como efeito a produção de uma alvissareira atmosfera de liberdade para todo o povo. (BOFF, 2012, p.13)

 

 

Em suma, a teologia latino-americana da libertação tem como fundamento o próprio Evangelho.  Sua análise se prima pelo confronto existente entre a fé e a realidade de milhões de pessoas que vivem em uma situação de miséria profunda. Trata-se de uma teologia popular, realizada a partir do povo e de sua realidade e suas necessidades. O seu grito por libertação de todo e qualquer tipo de opressão. A reflexão teológica libertadora vê o pobre como sujeito de sua própria libertação, portanto, prevê que ele é capaz de se organizar e de lutar em busca de melhores condições de vida. Considera também, que estar ao lado dos pobres é solidarizar-se com ele. Esse é o seu significado e sua essência, estar com Deus é estar com os pobres. A fé deve ser uma fé salvadora e libertadora, capaz de produzir mudança para aqueles que precisam. Todavia, tal teologia não é refém de uma ideologia, mas concretização de uma experiência que brota do Evangelho, o qual constitui o tronco dessa reflexão teológica, encarnada num ambiente eclesial, particularmente na Igreja fundada por Cristo e confiada aos Apóstolos, galhos fortes que sustentam a riqueza evangélica.

 

  1. DESDOBRAMENTOS TEOLÓGICOS

A teologia latino-americana da libertação não se encerra tão somente numa única perspectiva, mas procura dialogar com as mais diferentes denominações cristãs e religiões. Desse modo, trata-se de uma abertura ao Ecumenismo e ao Diálogo Inter-religioso.

Tal postura resulta do espírito do Concílio Vaticano II, o qual promulgou um decreto e uma declaração que tratam desses pontos. O primeiro, no que tange ao ecumenismo, “Unitatis Redintegratio” traz em seu bojo a preocupação da unidade da Igreja com as outras igrejas, justamente por todas terem Cristo como pastor e guia. A declaração “Nostra Aetate” pretende estabelecer o diálogo com outras religiões, pois cada religião busca religar o homem a Deus, portanto, nessa tarefa comum, cada qual ao seu modo, a reciprocidade entre as religiões é testemunho dessa busca pelo transcendente.

Porém, “nem tudo são flores” o desafio de criar laços entre as igrejas e as diversas religiões exige uma profunda reflexão teológico-antropológica. Cabe aos teólogos, tanto católicos quanto protestantes, assim como os líderes religiosos de buscarem a unidade na diversidade. De fato, no 13º Interclesial das CEB’s realizado em 2008 na cidade de Porto Velho, muitos povos reuniram-se em torno da Palavra para celebrarem a vida. O documento final destaca ao que tange à prática ecumênica:

 

A perspectiva ecumênica é algo fundamental para todo e qualquer esforço teológico-pastoral. Essa visão, quando vivenciada existencialmente e/ou assumida como elemento básico entre os objetivos, altera profundamente o desenvolvimento de qualquer projeto, iniciativa ou movimento. Em todos os campos da teologia pastoral, o dado ecumênico suscita novas e desafiantes questões. (CEBS, 2008, p.120)

 

Nessa ótica, o mesmo documento retrata as dificuldades da questão da pluralidade dos povos presentes no planeta:

A realidade do pluralismo religioso nem sempre é acolhida positivamente e isso tem uma explicação sociológica. Na verdade, esse pluralismo, como expressão da modernidade, tende a solapar as certezas com as quais as pessoas conviveram ao longo da história. E nada mais duro para as pessoas do que habituar às incertezas. São poucos aqueles que conseguem conviver harmonicamente com o pluralismo. A grande maioria sente-se insegura num mundo cheio de possibilidades e aberto a novas interpretações. Daí a atração exercida pelos movimentos que prometem assegurar ou renovar as certezas nesse tempo de crise dos conhecimentos autoevidentes. (TEIXEIRA apud CEBS, 2008, p.133)

 

 

Dessa maneira, a teologia latino-americana foi protagonista na prática ecumênica e inter-religiosa procurando ser ponto de união, ao ser “pedra de tropeço” na busca da paz mundial, paz essa que não será alcançada por tratados diplomáticos, mas que à luz da fé é a esperança dos povos por um mundo mais justo e fraterno.

Destarte, outro desdobramento teológico da teologia latino-americana é o cuidado com a Mãe Terra, a sensibilidade com os ecossistemas do planeta, nossa Casa Comum. Tal tema é atualmente a moda do momento, contudo, a reflexão teológica da libertação desde o seu início alertava para a consciência ecológica, sobretudo no alerta do apóstolo Paulo: “Porque sabemos que a criação inteira geme e sofre as dores de parto até o presente” (Rm 8,22).

Nessa perspectiva, o compromisso com a ecologia brota da experiência de fé, pois não basta à ideologia ecologista que visa salvar as árvores e animais “fofinhos”. O centro da criação é o ser humano, portanto, para uma mudança eficaz do paradigma ecológico é necessária uma reviravolta antropológica. O Papa Francisco na sua encíclica “Laudato Si”, enfatiza justamente essa ideia:

 

A falta de preocupação por medir os danos à natureza e o impacto ambiental das decisões é apenas o reflexo evidente do desinteresse em reconhecer a mensagem que a natureza traz inscrita nas suas próprias estruturas. Quando, na própria realidade, não se reconhece a importância de um pobre, de um embrião humano, de uma pessoa com deficiência – só para dar alguns exemplos – dificilmente se saberá escutar os gritos da própria natureza. Tudo está interligado. Se o ser humano se declara autônomo da realidade e se constitui dominador absoluto desmorona-se a própria base da sua existência, porque em vez de realizar o seu papel de colaborador de Deus na obra da criação, o homem substitui-se a Deus, e deste modo acaba provocando a revolta da natureza (FRANCISCO, 2015, p.74).

 

 

Desse modo, é nítido que homem é artífice da crise ecológica a qual coloca a sobrevivência dos seres vivos em risco, seja por tanto consumismo, seja por tantas necessidades das quais se tem hoje, seja pelo hedonismo que vende uma ideia falsa de felicidade baseada no prazer imediato, mas seja principalmente pelo “assassinato de Deus”, como declarou o filósofo alemão Friedrich Nietzsche, isto é, o homem tira Deus da sua vida e faz de si um deus, nisso reside à crise ecológica atual, como elucidou o papa Francisco.

Contudo, nessa descoberta qual o futuro do homem e do planeta? Basta esperar o fim eminente? Dessa maneira, Leonardo Boff no seu livro: “Saber Cuidar”, oferece um fio de esperança:

 

Tudo o que vive precisa ser alimentado. Assim o cuidado, a essência da vida humana, precisa também ser continuamente alimentado. As ressonâncias do cuidado são sua manifestação concreta nas várias vertebrações da existência e, ao mesmo tempo, seu alimento indispensável. O cuidado vive do amor primal, da ternura, da carícia, da compaixão, da convivialidade, da medida justa em todas as coisas. Sem cuidado, o ser humano, como um tamogochi, definha e morre. Hoje na crise do projeto humano, sentimos a falta clamorosa de cuidado em toda parte. Suas ressonâncias negativas se mostram pela má qualidade de vida, pela penalização da maioria empobrecida da humanidade, pela degradação ecológica e pela exaltação exacerbada da violência. Não busquemos o caminho da cura fora do ser humano. O ethos está no próprio ser humano, entendido em sua plenitude que inclui o infinito. Ele precisa voltar-se sobre si mesmo e redescobrir sua essência que se encontra no cuidado (BOFF, 2011, p.190-191).

 

Em suma, nesse ponto analisaram-se dois desdobramentos teológicos fundamentais da teologia latino-americana da libertação, tal seja; o ecumenismo e diálogo inter-religioso, e, a ecologia. Ambos são paliativos em vista de soluções para problemas graves que afetam a vida da Igreja na América Latina. Ainda há inúmeros desdobramentos que brotam da reflexão teológica latino-americana, contudo, para não delongar a reflexão basta situar esses dois. Porém, o ecumenismo e a ecologia representam galhos fortes da teologia da libertação, dos quais brotaram lindas flores que deram bons frutos, os quais partilhados na vida das comunidades foram presença do Deus libertador.

 

 

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

            Nesse curto esboço sobre a Teologia Latino-americana da Libertação não seria capaz de açambarcar todo o seu conteúdo, pois, por se tratar de uma teologia relativamente nova, muito ainda precisa ser refletido, repensado e reestruturado. Desse modo, o pequeno trajeto percorrido contribuiu muito para a Igreja na América Latina, merece destaque, sobretudo, a Conferência Nacional dos Bispos no Brasil (CNBB), a qual pertenceu inúmeros bispos profetas e defensores dos pobres, tais como: Dom Helder Câmara, Dom Luciano Mendes de Almeida, Dom Luiz Flávio Cappio entre outros. Igualmente, deu sua vida pelo Evangelho o Beato Dom Oscar Romero em Honduras. Há ainda inúmeros mártires anônimos que ousaram defender os pobres lutando para que todos tivessem plenas condições de vida. De fato, o continente latino-americano foi regado pelo sangue de inocentes, tal como o crucificado.

Nessa perspectiva, a presente reflexão procurou elucidar a situação na qual nasceu a Teologia Latino-americana retratando o conturbado período histórico dos anos sessenta do século passado, o qual foi marcado por revoluções políticas, ditaduras militares e exploração capitalista. Num segundo momento, ressaltou-se a fundamentação teológica de tal reflexão, a qual se sustenta nas Sagradas Escrituras, sobretudo, no Evangelho. A partir disso, a teologia da libertação vincula a fé com engajamento social e político. Finalmente, elencaram-se dois vieses principais: o ecumenismo/diálogo inter-religioso e o ecológico. O primeiro é a busca da unidade dos cristãos e abertura para uma cultura de paz entre as religiões. Posteriormente, a discussão ecológica é importante devido à falta de cuidado com a casa comum, o que resulta em má qualidade de vida e extinção da possibilidade dos que ainda virão-a-ser, isto é, as gerações futuras não terão um planeta para viverem.

Em suma, a Teologia Latino-americana da Libertação ao nascer foi regada com a herança da tradição teológica, pois nenhuma teologia nasce do nada. Tornou-se ela uma frondosa árvore, porém, depois de bons frutos tem a tarefa de ser recultivada. Em outras palavras, a reflexão teológica latino-americana teve muitos acertos, contudo, alguns equívocos fragilizaram suas bases, cabe o desafio de rever suas fundamentações teológicas para uma práxis mais autêntica, que não fira as Escrituras sagradas, não despreze a Tradição e busque a comunhão com o Magistério. Se assim ela proceder tornará ainda mais o Evangelho conhecido entre os homens.

 

 

 

 

 

REFERÊNCIAS

 

BOFF, Leonardo. Jesus Cristo libertador: ensaio de cristologia crítica para o nosso tempo. Petrópolis, RJ. Vozes, 2012.

______________. Saber Cuidar: ética do humano-compaixão pela terra.17ed.Petrópolis, RJ. Vozes, 2011.

BOFF, Leonardo; BOFF Clodovis, Como fazer teologia da libertação. Petrópolis: Vozes, 2010.

 

CEB’S. Do ventre da Terra, o grito que vem da Amazônia. Org. Valtecir Luiz Cordeiro. São Paulo. Paulus, 2008.

CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL. Diretório Nacional de Catequese.2.ed.Paulinas, São Paulo,2006.

COMPENDIO VATICANO II. Constituições, Decretos e Declarações. Ed.30 Petropólis,RJ. Vozes, 1969.

FRANCISCO Papa. Carta Encíclia Laudato Si: sobre o cuidado da casa comum. São Paulo, Paulus, 2015.

 

GIBELLINI, Rosino. A Teologia no século XX. São Paulo: Loyola, 1988.

 

GUTIÉRREZ, Gustavo. Teologia da libertação: perspectivas. Petrópolis, Vozes, 1975.

LIBANIO, J.B. Conferências Gerais do Episcopado Latino-americano. São Paulo. Paulus, 2007.

 

LIBANIO, J.B. MURAD, Afonso. Introdução à Teologia: perfil, enfoques, tarefas. Ed.8 Loyola, São Paulo, 2011.

[1] Professor de Filosofia do Ensino Médio na rede estadual paulista. Licenciado em Filosofia pela FAE Centro Universitário (2014). Bacharel em Teologia pela PUC-SP (2019).

[2] Todas as citações bíblicas foram tiradas da Bíblia de Jerusalém.