Prof. Ms. Dr. Sergio Alejandro Ribaric’, Teólogo.

“A Igreja, que nasce do mistério da Redenção na Cruz de Cristo, tem o dever de procurar o encontro com o homem, de modo particular no caminho do seu sofrimento. É em tal encontro que o homem « se torna o caminho da Igreja »; e este é um dos caminhos mais importantes.” (CARTA APOSTÓLICA Salvici Doloris 3, João Paulo II, 1984)

Num canto da capela lateral, longe da porta que ainda deixa vazar poucos ruídos denunciando a cidade grande que voa lá fora, busco alguns momentos de silêncio para, às vezes, ouvir melhor a voz de Deus. É raro que as pessoas entendam isso.

Quando os seres humanos conseguem acalmar o mundo externo ao seu redor, eles vão adquirindo aos poucos a capacidade para o pensamento contemplativo e compreendem que Deus é mais que um Ser absoluto, é uma Presença infinita e viva dentro de cada indivíduo, como já dizia Santo Agostinho em suas “Confissões”: “Tarde te amei, ó beleza tão antiga e tão nova! Tarde demais eu te amei! Eis que habitavas dentro de mim e eu te procurava fora!… Estavas comigo, mas eu não estava contigo. que procurava fora, o que estava dentro e por isto tão tardiamente amou esta beleza tão nova e tão antiga”. (Santo Agostinho, Confissões, 10, 27-29).

Eu iria dar uma aula, faltava ainda meia hora e procurei, como habitualmente faço, um lugar escondido na capela lateral da basílica do mosteiro onde pudesse ficar quieto com os meus pensamentos. Afinal, falar de Deus é uma pretensão que todo teólogo se arvora, desde que se percebeu com razão. Normalmente acho-O não nos livros ou nos tratados de teologia, mas na quietude dessa capela, ficando quase invisível, me escondendo por alguns momentos. O mosteiro de São Bento é verdadeiramente uma ilha no meio do caos da cidade de São Paulo. A antiga e imponente edificação às portas de uma das saídas do metrô São Bento, chega a ser um outro universo! Ao sair dos vagões atulhados de pessoas que se acotovelam e entrar nessa basílica de luz suave e beleza ímpar toda pessoa faz uma experiência de raro aconchego. Embora para Deus, o importante não seja o lugar, mas a disposição do coração de quem O procura, um lugar como esse, em que se respira paz, certamente favorece esse encontro.  No Evangelho de Mt. 6,6, Jesus ensina os seus discípulos a orar, “Tu, porém, quando orares, entra no teu quarto, fecha a porta e ora a Pai que está no escondido. E teu Pai que vê no escondido, te dará a recompensa”. Com essa passagem Jesus ensina que, para o momento de oração acontecer, é preciso que a pessoa se coloque em estado de silêncio, de quietude; ponha-se em estado de intimidade com Deus. Todos precisamos de um momento de interioridade no nosso íntimo, um lugar secreto para nos retirarmos em um espaço e um tempo dedicados ao nosso relacionamento com Deus. Algo impensável no centro de SP e para quem ainda não se aventurou por esses muros e pelas portas grandes de madeira que separam o sagrado e o profano.

Em geral pelas manhãs algum monge treina no órgão principal e, sem o saber, embala esses momentos íntimos de cada um que adentra na basílica em busca de paz. E não raro encontra mais que paz; encontra um momento com Deus. “Se a oração não recolhe as alegrias e tristezas, as esperanças e angústias da humanidade, torna-se uma atividade “decorativa”, uma atitude superficial, teatral…”. Entrar no silêncio, no escondido do coração é, às vezes, encontrar-se com Deus. Privilégio de poucos: oração na intimidade de uma capela ilhada no centro de são Paulo e ainda por cima, sob uma belíssima trilha sonora!

Mas naquela manhã, algo aconteceu que chamou minha atenção.  E não foi a primeira vez.

Quase todas as manhas busco uns minutos de oração silenciosa antes de entrar em aula na faculdade de teologia que se encontra no mesmo prédio. Falar sobre Deus em aula e não falar com Ele….

Não raro também minha oração e meus pensamentos são interrompidos por uns soluços de alguém que na capela lateral, ajoelha-se em frente ao sacrário e a emoção ou o sofrimento daquele momento começa a lhe brotar nos olhos. O homem sofre, quando ele experimenta um mal qualquer!  O sofrimento entra na vida de forma súbita, inesperada e, como é sabido, em diversos momentos da vida, de diversas maneiras e assume dimensões diferentes em cada um.  Neste dia percebendo essa pobre mulher ajoelhada em total desespero, me atrevi a chegar perto dela e lhe perguntar que acontecia. Se podia ajudar em algo…. a pessoa levanta seu olhar e entre assustada e agradecida, recusa timidamente minha ajuda como me perdoando a interrupção de um momento entre ela e Deus. “Nada não. Agradeço” é a frase que já ouvi algumas vezes como resposta em situações semelhantes as minhas tentativas de ajuda.

Naquela manhã, o Espírito Santo fez com que um monge, jovenzinho e de hábito negro, como costumam andar os monges dentro do mosteiro de São Bento, passasse por trás do sacrário em busca de algum objeto que teria sido deixado no altar lateral.  Eu disse “Deus fez com que um monge passasse“ porque ao vê-lo, a senhora enxuga rapidamente as lagrimas em sua manga de malha  e se dirige ao jovem pedindo-lhe uma palavra.  A essa pessoa vestindo um hábito de monge ela encontra a figura de intercessor junto a Deus. Ela acredita que pode libertar de dentro de si esse grito abafado, dolorido e saciar o desejo de um encontro com a verdade e, quem sabe, o anseio de saciar o vazio da própria alma. Vazio que só Deus pode preencher totalmente. Lembrei-me de Santa Teresa D’ávila: “Só Deus basta!”.

O hábito…. ah o hábito!

Naquele hábito estava a Igreja de Jesus Cristo representada, que se demonstra na compaixão por quem sofre. Quantas vezes esta compaixão acaba por ser a única ou a principal expressão do nosso amor e da nossa solidariedade com o homem que sofre. E foi o que presenciei naquele momento. Aquele jovem tinha deixado para trás o mundo lá fora, por amor a Deus. Esse mesmo mundo que a feriu e machucou e lhe tirou a paz. Dentro daquela vestimenta havia alguém que havia amado a Deus acima de tudo, para poder servir, viver e orar em intimidade com Deus, vivendo a Sua misericórdia e distribuindo-a aos outros.  O Catecismo escreve de forma belíssima: «Interceder, pedir a favor de outrem, é próprio, […] dum coração conforme com a misericórdia de Deus» (CIC, n. 2635). E quem melhor que um sacerdote ou um monge para isso? Acolher com misericórdia para com quantos pediram para rezar por eles, pelos quais devemos rezar em sintonia com o coração de Deus. Esta é a verdadeira oração!

“Qualquer pessoa pode bater à porta de um orante e encontrar nele ou nela um coração compassivo, que reza sem excluir ninguém. A oração é o nosso coração e a nossa voz, e faz-se coração e voz de muitas pessoas que não sabem rezar ou não rezam, ou não querem rezar ou estão impossibilitadas de o fazer: somos o coração e a voz destas pessoas, que se elevam até Jesus, ao Pai, somos intercessores.”

O monge pratica a chamada “lectio divina”, uma leitura bíblica meditativa seguida de longos intervalos de silêncio, desenvolvida pelos chamados padres do deserto (monges eremitas gregos e egípcios dos séculos IV e V) e adotada como regra por São Bento, o fundador da ordem beneditina. Cada monge faz diariamente essa experiência de oração e com isso é chamado a tornar-se, pelas mãos de Deus, pão repartido e partilhado com os demais. Essa vestimenta que chamamos de “hábito” identifica isso: É a presença de alguém que está mais próximo de Deus e do mistério do que nós mesmos que vivemos absortos nas atribulações do mundo. Rezar é fazer um pouco como Jesus: interceder em Jesus junto do Pai, pelos outros. A vida monástica compreende a totalidade da resposta ao jovem rico que perguntou ao Senhor: O que devo fazer para herdar a vida eterna? O Senhor disse-lhe para guardar os mandamentos, que o homem declarou que ele tinha feito desde a juventude. Então o Senhor disse: se você quiser, vende tudo o que tens e dá-o aos pobres. Depois, vem e segue-me (Marcos 10,21).

De volta ao lugar que estava antes de ir até ela, vi os dois agora sentados na primeira fila e ele em silêncio, a ouvia pacientemente. Como Maria, Mãe de Cristo, que estava em pé junto à Cruz, ele deteve-se junto a cruz daquela mulher. Qualquer um que entrasse na basílica naquele momento certamente teria chamado a sua atenção o momento de intimidade daqueles dois. Que bela cena…. aquele monge sentado ouvindo e orando com uma pessoa em busca de restauração, conforto e esperança … de Deus.  Em cada pessoa que entra por essas portas, em cada pessoa que perdeu o sentido das coisas, a Igreja e com ela o monge que reza vê o rosto de Cristo. “a oração permite ver o rosto de Cristo nos outros e aprender a vê-los com os olhos de Deus, com a Sua inesgotável compaixão e ternura”. Esse momento de amor e essa ajuda valeu a escolha que esse jovem fez um dia a Deus!

Como é importante a presença de um religioso num templo, presença num mundo que desampara os homens em seus momentos de maior aflição na solidão deles próprios! O hábito não faz o monge, mas identifica-o! A presença de um hábito sinaliza a escolha, a renúncia, o amor maior dessa pessoa a seu Deus. Mas isto não significa fugir à realidade. Ao contrário do imaginado, não afasta o monge do mundo. Mas aproxima-o! Conta-se na biografia de S. Francisco de Assis, que ele convidou um frade para uma pregação na cidade. Depois de percorrerem toda a cidade, ao regressar ao convento, o confrade perguntou: – e a pregação?  O santo respondeu: – “fizemos a pregação pelo nosso hábito e pelo nosso silêncio”.

Saio agradecido a Deus por ter presenciado esse momento e pela Igreja que através do Espírito Santo, socorre e ampara o homem em seus momentos mais dolorosos. Como também proporciona, momentos de experiência e de encontro com Deus, justamente em momentos em que o homem, em seu sofrimento, e nas tribulações do dia a dia, mal ouve Seu silêncio.

Já é hora da aula. Antes de entrar na faculdade, olho para o velho prédio do mosteiro e imagino nestes longos anos desde sua fundação, quantos homens e mulheres desejosos apenas de um momento a sós com o silencioso Deus, O terão encontrado e O experimentado dentro dessas paredes, ao passar por essas portas do mosteiro, sempre abertas para quem quer, precisa ou deseja uma oração? E quantas vezes sob a presença de algum dos monges que por aqui viveram.

“Assim o orante reza pelo mundo inteiro, carregando sobre os ombros as suas dores e os seus pecados. Reza por todos e por cada pessoa: é como se ele fosse a “antena” de Deus neste mundo. Em cada pobre que bate à porta, em cada pessoa que perdeu o sentido das coisas, aquele que reza vê o rosto de Cristo.”

Os sinos tocam alto. Como Lembrando a quem passa apressado pelo centro desta cidade: “Deus está aqui”. No silêncio do sacrário, você pode encontra-lo. Ele vai enxugar suas lagrimas.

“Senhor, meu Deus, não imagino sequer para onde vou, não vejo o caminho que se abre a minha frente. Não posso saber com certeza  onde terminará. Tão pouco me conheço realmente a mim mesmo, e o fato de pensar que estou a cumprir a Tua vontade, não significa que estou a cumpri-la realmente. Creio, porém, que o desejo de Te agradar te agrade mesmo. Espero manter este desejo em tudo o que fizer e nunca fazer coisa alguma que se afaste deste desejo. Sei que, assim procedendo, me conduzirás pelo caminho reto, mesmo quando acontecer que o não saiba. Por isso confiarei sempre em Ti, mesmo que pareça andar perdido entre sombras de morte. Nada temerei, pois comigo estarás sempre e jamais me abandonarás diante do perigo.” (Thomas Merton. Na liberdade da solidão. Petrópolis: Vozes, 2001, p. 66)

 

 

N.A. As citações em itálico, salvo as mencionadas no local, são da CATEQUESE DO PAPA FRANCISCO,  “A oração de intercessão”  proferida numa quarta-feira, 16 de dezembro de 2020, e disponível no site do Vaticano.