Prof. Ms. Dr. Sergio Alejandro Ribaric’. Teólogo, engenheiro e palestrante. Coordenador de Teologia da Faculdade São Bento e professor no ITESP.

“Em seguida ao terremoto, caiu um fogo, mas o SENHOR também não estava no fogo. E depois do fogo veio um sussurro de brisa suave e tranquila”. (1 Rs 19,12). E nela estava Deus.

 Era uma vez, há cerca de 4 mil anos atrás, um homem bom e de idade avançada. Rico, patriarca de uma tribo que levava seu nome, era das mais prósperas daquela região politeísta do antigo oriente.

A cidade mais próxima, densamente povoada para os padrões da época, estava cercada de tribos seminômades, porque a terra e o clima costumavam ser imprevisíveis e implacáveis. Dias e semanas repletas de sol e chuvas férteis, alternavam épocas de seca e calor intenso, o que tornava a sobrevivência quase impossível. Não raro a dura batalha pela subsistência obrigava-os a se locomoverem para outras regiões.

Mas a riqueza deste homem estava sombreada pela esterilidade de sua esposa. Eles não tiveram filhos. O que nesse tempo era sinal de maldição ou castigo divino. Ao menos da ira de um dos deuses que eles acreditavam. O homem primitivo sempre ligou os fenômenos da natureza a divindades. Tinham deuses para quase tudo: Do trovão, das tempestades, do sol, da noite, da fertilidade (seria esse deus que estaria castigando-o não lhe permitindo descendência?) e tantos mais. Não raro cada tribo se permitia completar suas divindades, provindas de suas próprias necessidades. Bastava uma estátua bem feita, com as características humanas do deus a ser adorado e pronto! Estava criado mais um para o já longo panteão.

Muitas pessoas dessa região sobreviviam esculpindo estátuas e imagens. Além das tradicionais representações das divindades, eles faziam também deuses pessoais. Seu próprio pai sustentou sua família com essa atividade. Muitas tribos se uniam a outras devido ao casamento dos primogênitos do patriarca. E junto com a noiva e do dote, vinham novas tradições religiosas (leia-se deuses) a serem inculturados.

A descendência numerosa era a maior riqueza que um patriarca podia desejar. Garantia a sobrevida e a eternidade de sua tribo e de seu nome.  Orações, cultos, sacrifícios e promessas tinham sido em vão. O deus da fertilidade decididamente não queria que tivesse descendência. E agora, já velho, suas esperanças terminaram tristemente.

Todas as cidades e povoados dessa e de tantas outras regiões do oriente, seguiam a pratica de sacrifícios humanos. Apesar de horrenda e inadmissível aos olhos de hoje, essa prática era comum. Isso era explicável: Para que um deus pudesse dar algo importante, o homem deveria fazer o mesmo: dar em troca alguma coisa de extremo valor, para provar a sua fé e confiança na retribuição e poder dessa divindade.

Ora, o que poderia de haver de mais caro? Um filho. Mais ainda, o filho-homem e primogênito era sempre o escolhido para ser sacrificado, na esperança de reconhecer e agradecer as boas graças desse deus e com isso retribuísse com uma descendência numerosa. Mas isso não preocupava o nosso bom homem. Ele não tinha filhos e não os haveria de ter. Sua preocupação e cuidados desde então, se direcionava aos animais que possuía, a torná-los gordos e saudáveis para poderem procriar e aumentar o rebanho. Além dos animais, ocupava seu tempo com as plantações e eventualmente pequenos artesanatos que mantinham as mulheres da tribo ocupadas durante os longos e áridos dias.

Era um hábito seu contemplar o espetáculo do pôr do sol e sentir o vento fresco no corpo, o que lhe trazia bem estar e frescor, tão raro naqueles campos de calor intenso. Um dia, sentado em uma pedra e aproveitando essa brisa fresca do cair da tarde, ele sentiu-se profundamente feliz com a sua vida. E mesmo sem filhos, sentiu a necessidade de sair desse lugar. Ir para outras terras e fincar sua tribo em lugares novos. Mas como enfrentar esse deserto que limitava a cidade? Nunca ninguém tinha ido além de um dia de viagem para ter provisões para a volta. Que garantia teria que esse deserto não seria apenas o fim das terras com água e vegetação?

Numa de suas tardes ao pé da montanha, sentiu em seu coração que deveria ir além. Quem sabe, já que não podia tornar a sua tribo a mais numerosa, garantiria sua eternidade diversificando-a e dividindo-a em outros lugares. E sob o frescor da despedida de mais um dia criou coragem para a empreitada. Quem sabe, já que ele se arriscaria a ir em busca de novas terras, conheceria algum deus local que se apiedaria dele e lhe daria um filho na velhice. Quem sabe?

Alguns anos mais tarde, novamente sentado ao pé da montanha, pareceu-lhe ouvir uma voz que, saindo de dentro lhe prometia um filho! Mas que deveria amá-lo e cuidá-lo porque esse filho na verdade seria filho de um deus que cria vida aonde quer. E sendo tão poderoso sua única intenção ao criar um novo ser era para amá-lo e permitir que fosse amado também. Aos poucos foi entendendo o misterioso porquê da vontade de todo homem de ter a sua descendência: Não era preservar a espécie ou sua tribo, mas disseminar o amor!

Rindo dessa visão interna que teve, voltou para casa sorridente como sempre.    Mas um motivo para aumentar seu sorriso estava por vir naquelas semanas: Sua mulher, embora já de idade avançada estava grávida!! Impossível! Depois de tantos e tantos anos pedindo e sacrificando animais a um deus da fertilidade, eis que ele finalmente o ouviu!

E não é que nasceu mesmo? Um lindo menino. E ainda por cima esse deus lhe deu um filho homem que garantiria a sua descendência. Não podia estar mais feliz. Ele e sua esposa sacrificaram o melhor de seus animais e agradecidos o ofereceram como troca.

Passaram-se alguns anos e com a idade chegando, o casal de velhos via seu menino crescer e fortalecer-se. A vida deles tinha se transformado completamente! Sentiam felicidade em tudo o que faziam. Parecia até que o amor do casal tinha aumentado e se renovava a cada dia. Sem dúvidas essa nova vida os uniu ainda mais e a forma com que experimentavam diariamente o mistério da vida e da criação. De todos os deuses deles, sem dúvida esse deus da fertilidade era o maior!

Mas um dia….. um dia ele pediu seu pagamento. Como toda a tribo já sabia, e todos nas regiões também, esse menino deveria ser sacrificado em nome desse deus para que todos reconhecessem seu poder. E isso garantiria uma descendência fértil daí em diante. Para toda a tribo.

Desesperado com esse destino, ele e a esposa não sabiam o que fazer. E nem como fazê-lo! Para que tanto amor aumentando dia a dia pelo desejado filho, se agora, repletos desse amor, teriam de fazer o impossível: sacrificá-lo!

Por outro lado, como desobedecer e com isso arcar com as maldiçoes e pragas que sobreviveriam a essa desobediência? Como sendo pequenos e insignificantes homens, poderiam  enfrentar a ira desse deus?

Chegou o tempo do sacrifício. Não podia postergar mais. Programou uma viagem e para poupar sua esposa da triste finalidade, levou apenas o menino e um empregado. A ninguém disse o real motivo. Mas a esposa no fundo sabia. Sabia que era uma atitude para poupá-la desse momento e da dor de uma despedida final. Poupá-la de olhar para o filho morto.

Preparam a viagem, e com a ajuda de um animal de carga se muniram de provisões, água e abrigo para alguma intempérie e lá foram os três em direção desconhecida. De longe percebia-se a angústia daquele velho que andava curvado mas teimando em colocar o braço carinhosamente pousado sobre os ombros do filho querido. Caminhando em silêncio, deixava o filho falar, contar-lhe coisas e brincadeiras que fazia durante os pastoreios que o pai o incumbia. Parece que isso piorava a sua angústia e tristeza. Mas ouvir esse garoto lindo e percebê-lo semelhante a sí próprio em suas feições, permitiria que guardasse ainda mais a sua voz e, daqui pra frente, lembrasse com carinho das histórias de sua pequena e curta vida.

Chegaram finalmente em um local que lhe parecia apropriado. Não havia mais como seguir em frente. As provisões já tinham passado da metade, o que mal garantia a sobrevivência ao caminho de volta. Seria nesse lugar!

Escolheu uma pedra mais ou menos lisa para servir de altar e de holocausto. O pequeno obedecia ao pai mesmo sem entender o porquê do silêncio e das lágrimas que acompanhavam os soluços engasgados dele. Afinal, tantas e tantas vezes o pai e ele presenciaram sacrifícios de animais. Em dado momento perguntou aonde estaria o animal para o sacrifício: deveria ser um carneiro gordo e macho. Mas porque não o trouxeram?

Dentro de si, o velho homem transformava sua tristeza em dúvida e revolta. Que deus é esse que me permite a felicidade para depois tomá-la? Que deus sádico é esse? Lembrou-se do dia em que teve a sensação de que teria sim um filho: foi o dia mais feliz de sua vida. E agora estava sendo o pior. Para quê isso? A grandeza de um deus que lhe deu essa felicidade e se dizia deus da vida e criador, não pode ser o mesmo que a tira causando tanta dor e sofrimento.  Afinal deus para ser todo poderoso e se bastar a si próprio, necessariamente deveria ser único; não poderia haver outros. E sendo criador, de que lhe valeria todo esse poder de criar vida se assim não o fizesse? Ou exigisse a morte de alguém para sua satisfação? Não! Não ia fazer isso.

Há anos atrás esse deus não criou apenas uma vida, criou um amor pulsante como ele e a esposa nunca sentiram antes. Nem quando se conheceram e resolveram se unir em casamento.  Não! Esse deus não lhe pedia apenas a morte de seu filho. Estava lhe pedindo a sua felicidade e a de sua esposa.

No momento em que ia empunhar a faca na garganta do menino, lembrou-se das tardes frescas ao pé da montanha, onde um dia no frescor da brisa de uma tarde, misteriosamente sentiu que ia ser pai. E o tanto que isso lhe deu felicidade e paz.  Sua mão tremeu e os olhos de seu filho assustado obrigaram a soltá-la. Não! Ele o amava demais para isso. Se deus criou uma vida por amor e para amar, esse deus não lhe pediria essa vida em troca. E mesmo que lhe pedisse, ele não iria matá-lo. O amava demais para fazer isso.

Abraçou e beijou seu filho enquanto o soltava das amarras e o descia do altar do sacrifício. O amor desse velho homem fez desaparecer o medo e a tristeza e se transformou em alegria. E sua dúvida se fez Fé. Repentinamente, ainda abraçado ao pequeno, protegendo-o, e cheio de amor, sentiu ao seu redor a sua conhecida fresca e suave  brisa.

E nesse momento, pela primeira vez, um homem reconheceu o verdadeiro Deus.